TRF1 - 1011488-73.2023.4.01.3100
1ª instância - 6ª Macapa
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21/09/2023 00:00
Intimação
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Amapá 6ª Vara Federal Cível da SJAP SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1011488-73.2023.4.01.3100 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: CARINA DA SILVA SAMPAIO REPRESENTANTES POLO ATIVO: NADSON RODRIGO DOS SANTOS COLARES - AP2740 POLO PASSIVO:FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ EMENTA: AÇÃO DE CONHECIMENTO CÍVEL.
SENTENÇA.
SISTEMA DE COTAS.
VAGA EM UNIVERSIDADE.
HIGIDEZ DO ATO PRATICADO PELA COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO.
IMPROCEDÊNCIA.
REVOGAÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA.
SENTENÇA I – RELATÓRIO Trata-se de ação de conhecimento, com pedido de tutela de urgência, proposta por CARINA DA SILVA SAMPAIO em face da FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ.
Narra, em síntese, na petição inicial (id 1593134384) que: “2.
A requerente é parda, filha de pais pardos e avos negros.
Concorreu a vaga no curso de medicina da Unifap e fez a autodeclaração de sua cor parda.
Tem sido indeferida sua matrícula eis que ao talante da comissão de heteroidentificação da UNIFAP, não preenchia os requisitos. 3.
Até a presente data não teve acesso aos fundamentos que levaram a comissão a negar sua matrícula.
Entregaram apenas a súmula da decisão sem a presença de fundamentação, o que viola o estatuído no artigo 93,IX da Constituição Federal. [...] 6.
A autora, filha de pais pardos e avos negros, descendente de pretos e mãe parda, fez a autodeclaração e apresentou todos os documentos necessários para a concorrer à vaga [...] 7.
Sua inscrição, desse modo, foi negada ao argumento que não cumpria os requisitos para alcançar o fenótipo que se iguala ao ser pardo (parecer em anexo) [...] 12.
Exa., a segue a abaixo e em anexo Declaração de Heteroidentificação Fenotípica emitida pela Polícia Técnica Cientifica do Estado do Amapá a qual que a requerente esta classificado como ‘PARDA’”.
Em sede de tutela de urgência requer: “18.
Diante disso e pelo fato de já terem começado aulas, urge a necessidade de conceder tutela de urgência para sustar os efeitos da decisão da Comissão de heteroidentificação e determinar que a UNIFAP proceda à matricula da requerente até ulterior deliberação deste juízo, eis que presentes o perigo da demora considerada a exiguidade do tempo e a fumaça do bom direito consistente no formal e expresso reconhecimento por autoridade científica da presença dos fenótipos que a caracterizam parda” Requer, ainda, a concessão do benefício da gratuidade de justiça.
A inicial veio instruída com documentos.
Tutela de urgência concedida, nos termos da decisão de ID. 1605761874.
A FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ apresentou contestação em ID 1637246420, sustentando a higidez do ato de desclassificação e pugnando pela improcedência da demanda (ID. 1637246420).
A Autora apresentou réplica em ID. 1647754988, reiterando os pedidos da inicial.
Requereu a realização de audiência.
II – FUNDAMENTAÇÃO Do pedido de provas A respeito das provas, apenas a parte Autora trouxe pedido expresso.
Na ocasião, sem especificar a finalidade, requereu a realização de audiência de instrução.
Consoante dispõe o art. 443 do CPC: “Art. 443.
O juiz indeferirá a inquirição de testemunhas sobre fatos: I - já provados por documento ou confissão da parte; II - que só por documento ou por exame pericial puderem ser provados” Outrossim, “Art. 370.
Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Parágrafo único.
O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias” No caso dos autos, além da ausência de indicação de utilidade da prova, por parte de quem a requereu, os fundamentos da sentença se mostram suficientes a afastar a necessidade de realização de audiência no presente, razão pela qual INDEFIRO a dilação probatória requerida.
Não houve arguição de questões preliminares e/ou prejudiciais à análise do mérito.
O processo se apresenta apto para o julgamento, razão pela qual passo à análise.
Do mérito Após a instrução processual, a revisão da decisão antes proferida pelo magistrado subscritor do ato de ID. 1605761874, na fase de análise da tutela de urgência requerida, é medida impositiva.
Explico.
A Lei 12.990/2014 se insere entre os mecanismos de ação afirmativa postos em favor daqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Sobre o assunto, sabe-se que os direitos fundamentais determinam prestações tanto negativas quanto positivas.
Notadamente os da primeira geração originam deveres de abstenção ou tolerância do Estado frente a comportamentos dos particulares, mas também existem os direitos fundamentais que ensejam a assunção de certas obrigações de fazer.
Nesse campo estão os direitos que geram pretensões a prestações positivas voltadas à satisfação, sobretudo, dos chamados direitos socioeconômicos.
De outro lado, sabe-se também que o princípio isonômico é concebido tanto no sentido formal quanto material.
Por meio dele impõe-se, respectivamente, a igualdade na aplicação da lei (“igualdade perante a lei”) e a igualdade por intermédio da lei (“igualdade na lei”).
Em seu aspecto negativo, o princípio da igualdade é encarado quer como exigência de tratamento igual, quer como proibição de tratamento desigual.
Quanto ao aspecto positivo, o princípio da isonomia representa o dever de favorecer e de criar pressupostos voltados à correção das distorções que atingem aqueles menos favorecidos por quaisquer dos critérios (biológicos, sociais, econômicos, culturais, políticos) que possam dificultar o surgimento das mesmas “condições de partida” entre as pessoas.
Assim, a isonomia é cumprida tratando igualmente os iguais e desigualmente os desiguais como fornecendo os meios para reduzir ou compensar as dificuldades subjacentes às desigualdades enfrentadas para cada qual. É com referência a esse último esforço que se fala em ação afirmativa por parte dos órgãos públicos.
As ações afirmativas são práticas estatais que, por meio de “tratamentos preferenciais”, buscam reequilibrar e/ou redistribuir, num caráter efetivo, as oportunidades disponíveis entre segmentos sociais particularizados, tendo como norte especial o princípio da isonomia.
A Constituição de 1988 estabeleceu vários princípios e regras que se podem traduzir em preocupações com o aspecto positivo ou afirmativo do princípio da isonomia.
São exemplos o objetivo fundamental de erradicação das desigualdades regionais (art. 3º, III), o princípio da ordem econômica de redução das desigualdades sociais (art. 170, VII), bem como o art. 7º, XX, que prevê tratamento especial de proteção do mercado de trabalho feminino e o art. 37, VIII, que manda reservar percentual dos cargos e empregos públicos a pessoas portadoras de deficiência física Quanto aos objetivos das ações afirmativas, ensina JOAQUIM BARBOSA que estes consistem em: (a) coibir não só as discriminações do presente, mas, sobretudo, eliminar os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado; (b) implantar uma certa “diversidade” que dê aos grupos minoritários uma maior representatividade nos domínios das atividades pública e privada; (c) eliminar as “barreiras artificiais e invisíveis” (glass ceiling) que, independentemente da existência de uma política oficial marginalizadora; e (d) criar personalidades emblemáticas, por meio dos representantes dos grupos discriminados que alcançarem posições de prestígio e poder, para servirem de modelo (role models) ao projeto de vida das pessoas que integram o restante da comunidade discriminada.
Nessa mesma linha, o julgamento da ADPF 186/DF abaixo transcrito: “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL.
ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR.
ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE.
I – Não contraria - ao contrário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II – O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade.
III – Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa.
IV – Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado brasileiro.
V - Metodologia de seleção diferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição.
VI - Justiça social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles reputados dominantes.
VII – No entanto, as políticas de ação afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes deu origem.
Caso contrário, tais políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espírito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo, outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e os fins perseguidos.
VIII – Arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.”
Por outro lado, a questão das ações afirmativas está intrinsecamente vinculada ao problema das discriminações inversas.
Afinal, toda política de ação afirmativa acaba por discriminar, direta ou indiretamente, o segmento que por ela não foi contemplado.
Se a lei, atendendo à Constituição, fixa determinada cota de cargos públicos para serem preenchidos por deficientes físicos, está consequentemente discriminando os demais candidatos que concorrerem aos mesmos cargos, e assim por diante.
Destarte, também as ações afirmativas devem satisfazer critérios proporcionais e razoáveis, pois são inconcebíveis arbitrárias discriminações inversas. É dizer, o aspecto afirmativo do princípio da isonomia não exclui o negativo, daí por que o mesmo princípio da isonomia proíbe discriminações arbitrárias em matéria de ações afirmativas.
Nesse rumo, qualquer política de ação afirmativa deve considerar o princípio da proporcionalidade, inclusive aquelas previstas pela própria Constituição.
Assim, se a justificação da ação afirmativa está em atenuar ou superar determinadas dificuldades enfrentadas por cada qual para desenvolver as próprias capacidades que permitiriam disputar, com igualdade de condições, com aqueles que não encararam as mesmas dificuldades, é preciso atentar para o seguinte: a ação afirmativa só será constitucional à medida que os critérios utilizados na identificação dos respectivos beneficiários sejam condizentes com as dificuldades que a atuação estatal tente atenuar ou remediar.
A presente ação ataca a decisão da Comissão de Verificação de Autodeclaração que indeferiu a matrícula da Requerente, sob o fundamento de que a referida Comissão concluiu que não encontrou marcadores fenotípicos de negritude (preta ou parda), configurando as características de pessoa não negra.
Quanto ao assunto, extrai-se do Edital o seguinte: EDITAL Nº. 23/2023-DERCA/UNIFAP [...] 7.
Em obediência à Normativa nº 4, de 6 de Abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, a UNIFAP constituirá Comissão que procederá a heteroidentificação complementar aos candidatos cotistas (pretos, pardos ou indígenas).
Canditatos autodeclarados pardos, deverão ter fenotipia de pessoas negras. 7.1.
A Comissão de Heteroidentificação promoverá a análise presencial dos candidatos autodeclarados Pretos, Pardos ou Indígenas, e que forem habilitados na Chamada Pública, no dia 13/04/2023 às 08h:30min, em uma das salas do Derca, conforme cronograma constante no ANEXO VI.
A lista dos candidatos indeferidos pela Comissão de Heteroidentificação, será publicada no dia 13/04/2023, na página deste edital. 7.2.
Após a publicação, os candidatos indeferidos terão até o dia 14/04/2023 às 23h59min, para interpor recurso junto à Comissão Recursal, encaminhando ao email [email protected]. 7.3.
A Comissão Recursal, promoverá nova análise presencial, no dia 17/04/2023, às 08h:30min, em uma das salas do DERCA, a todos os candidatos que interporem recurso. 7.4.
O resultado da avaliação da Comissão Recursal, será divulgado na página deste edital, no dia 17/04/2023. (destaques nossos) No caso concreto, não verifico ilegalidade no simples ato de confirmação realizado pela Comissão de Heteroidentificação da condição de pessoa negra ou parda.
Isso porque – certamente para evitar fraudes e minorar os mencionados problemas da discriminação inversa subjacentes a esse tipo de ação afirmativa de caráter racial – o legislador teve o cuidado de prever a hipótese da “constatação de declaração falsa” ou mesmo “equivocada” do candidato que se autodeclarara negro ou pardo.
Veja-se o parágrafo único do art. 2º da Lei 12.990/2014, aplicável por analogia: Art. 2º.
Poderão concorrer às vagas reservadas a candidatos negros aqueles que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Parágrafo único.
Na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso e, se houver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou emprego público, após procedimento administrativo em que lhe sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.
Daí por que, em tese, a política de ação afirmativa concebida no edital do concurso atende às disposições contidas na Lei 12.990/2014, na parte em que prevê a possibilidade de eliminação do candidato, se constatada a falsidade da declaração da condição de pessoa preta ou parda.
Os problemas, porém, avançam para outro setor.
Primeiro, a lei permite questionar não só a declaração em si, que pode ser formalmente verdadeira ou falsa, mas sim o próprio conteúdo da declaração, ou seja, a falsidade ideológica do que foi declarado, de modo que há aí uma inegável contradição: a lei permite que o candidato se autodeclare negro ou pardos, porém permite que terceiros venham a refutar o conteúdo ideológico da “autodeclaração.
Daí a necessidade de se definir, então, quais são os critérios que terceiros poderão usar para dizer se o conteúdo da autodeclaração é ou não verdadeira.
Nesse sentido, pela lei, o benefício é destinado àqueles “que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição no concurso público, conforme o quesito cor ou raça utilizado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE” (art. 2º, caput). À semelhança, o chamado Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) considera como população negra “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga” (art. 1º, IV).
Ocorre que o IBGE também deixa ao alvedrio da autodeclaração a definição da própria cor ou raça.
O problema já foi alvo de julgamento do STF na ADPF 186/DF, quando se acolheu o voto do Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, entre cujos fundamentos está: “(...) Em outras palavras, tratando-se da utilização do critério étnico-racial para o ingresso no ensino superior, é preciso analisar ainda se os mecanismos empregados na identificação do componente étnico-racial estão ou não em conformidade com a ordem constitucional.
Como se sabe, no processo de seleção, as universidades têm utilizado duas formas distintas de identificação, quais sejam: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação por terceiros).
Essa questão foi estudada pela mencionada Daniela Ikawa, nos seguintes termos: “A identificação deve ocorrer primariamente pelo próprio indivíduo, no intuito de evitar identificações externas voltadas à discriminação negativa e de fortalecer o reconhecimento da diferença.
Contudo, tendo em vista o grau mediano de mestiçagem (por fenótipo) e as incertezas por ela geradas – há (...) um grau de consistência entre autoidentificação e identificação por terceiros no patamar de 79% -, essa identificação não precisa ser feita exclusivamente pelo próprio indivíduo.
Para se coibir possíveis fraudes na identificação no que se refere à obtenção de benefícios e no intuito de delinear o direito à redistribuição da forma mais estreita possível (...), alguns mecanismos adicionais podem ser utilizados como: (1) a elaboração de formulários com múltiplas questões sobre a raça (para se averiguar a coerência da autoclassificação); (2) o requerimento de declarações assinadas; (3) o uso de entrevistas (...); (4) a exigência de fotos; e (5) a formação de comitês posteriores à autoidentificação pelo candidato.
A possibilidade de seleção por comitês é a alternativa mais controversa das apresentadas (...).
Essa classificação pode ser aceita respeitadas as seguintes condições: (a) a classificação pelo comitê deve ser feita posteriormente à autoidentificação do candidato como negro (preto ou pardo), para se coibir a predominância de uma classificação por terceiros; (b) o julgamento deve ser realizado por fenótipo e não por ascendência; (c) o grupo de candidatos a concorrer por vagas separadas deve ser composto por todos os que se tiverem classificado por uma banca também (por foto ou entrevista) como pardos ou pretos, nas combinações: pardo-pardo, pardo-preto ou preto-preto; (d) o comitê deve ser composto tomando-se em consideração a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero e deve ter mandatos curtos.
Tanto a autoidentificação, quanto a heteroidentificação, ou ambos os sistemas de seleção combinados, desde que observem, o tanto quanto possível, os critérios acima explicitados e jamais deixem de respeitar a dignidade pessoal dos candidatos, são, a meu ver, plenamente aceitáveis do ponto de vista constitucional.” Nesse contexto, a lei permite a terceiros aferir a veracidade da autodeclaração do candidato, mas não traça quais seriam os critérios para se lhe afirmar a falsidade.
Logo, à vista da indefinição dos parâmetros de conferência da veracidade da autodeclaração do candidato, afigura-se adequado o indeferimento por fator fenotípico, sem que se possa considerá-lo desproporcional.
Com efeito, também foi a cor, por exemplo, uma das características fenotípicas que delimitam pessoas em função da raça e coloração da pele – o critério (igualmente fenotípico, diga-se novamente) eleito pelo legislado para, bem ou mal, promover discriminações positivas em favor de pretos e pardos, pelo que as características fenotípicas dos candidatos revelam-se igualmente aptas à verificação de que trata o parágrafo único do art. 2º da Lei 12.990/2014.
Por traços fenotípicos entenda-se, então, as características externas, morfológicas, fisiológicas dos indivíduos.
No caso em exame, a Comissão Avaliadora indeferiu a matrícula da parte autora, por considerar que ela não apresentava características fenotípicas condizentes com a sua autodeclaração.
A Portaria Normativa n. 4, de 6 de abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/Secretaria de Gestão de Pessoas, que baseia o edital, e regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei n°12.990, de 9 de junho de 2014, traz as seguintes disposições: “Art.1º Esta Portaria Normativa disciplina o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, a ser previsto nos editais de abertura de concursos públicos para provimento de cargos públicos da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, para fins de preenchimento das vagas reservadas, previstas na Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014.
Parágrafo único.
O procedimento de heteroidentificação previsto nesta Portaria Normativa submete-se aos seguintes princípios e diretrizes: [...] VI - garantia da efetividade da ação afirmativa de reserva de vagas a candidatos negros nos concursos públicos de ingresso no serviço público federal. [...] Art. 2º Para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros, o candidato deverá assim se autodeclarar, no momento da inscrição no concurso público, de acordo com os critérios de raça e cor utilizados pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.
Art. 3º A autodeclaração do candidato goza da presunção relativa de veracidade. § 1º Sem prejuízo do disposto no caput, a autodeclaração do candidato será confirmada mediante procedimento de heteroidentificação; § 2º A presunção relativa de veracidade de que goza a autodeclaração do candidato prevalecerá em caso de dúvida razoável a respeito de seu fenótipo, motivada no parecer da comissão de heteroidentificação. [...] Art. 6º O procedimento de heteroidentificação será realizado por comissão criada especificamente para este fim. § 1º A comissão de heteroidentificação será constituída por cidadãos: I - de reputação ilibada; II - residentes no Brasil; III - que tenham participado de oficina sobre a temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo com base em conteúdo disponibilizado pelo órgão responsável pela promoção da igualdade étnica previsto no § 1º do art. 49 da Lei n° 12.288, de 20 de julho de 2010; e IV - preferencialmente experientes na temática da promoção da igualdade racial e do enfrentamento ao racismo. § 2º A comissão de heteroidentificação será composta por cinco membros e seus suplentes. § 3º Em caso de impedimento ou suspeição, nos termos dos artigos 18 a 21 da Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, o membro da comissão de heteroidentificação será substituído por suplente. § 4º A composição da comissão de heteroidentificação deverá atender ao critério da diversidade, garantindo que seus membros sejam distribuídos por gênero, cor e, preferencialmente, naturalidade.
Art. 9º A comissão de heteroidentificação utilizará exclusivamente o critério fenotípico para aferição da condição declarada pelo candidato no concurso público. § 1º Serão consideradas as características fenotípicas do candidato ao tempo da realização do procedimento de heteroidentificação.” Ao compulsar o feito, observo que a comissão de heteroidentificação da UNIFAP negou o direito da candidata, ora autora, a concorrer dentro da cota em foco, sob o argumento de que não foram encontrados marcadores fenotípicos próprios de pessoas negras e pardas.
Observo, também, que aos não admitidos, em uma primeira oportunidade, foi permitida a avaliação presencial pela Comissão de Heteroidentificação.
A candidata compareceu à análise presencial realizada em 17 de abril de 2023.
Como resultado da análise a que restou submetida a Autora, foi proferido o seguinte parecer: “II – DA ANÁLISE Embora o (a) candidato (a) tenha alegado questões alusivas à sua ancestralidade, como pais negros, avôs e bisavôs negros, e/ou sentimento de pertencimento ao grupo étnico-racial, buscando legitimar sua condição de preto/pardo, o candidato não demonstrou as características fenotípicas necessárias para preencher a vaga.
O candidato não comprovou, por meio documental e/ou cópias de fotos e vídeos, o conteúdo do recurso e, no caso específico, pela análise presencial, que possui fenótipo com algumas características de afrodescendência, como mesmo grupo/estereótipo, traços físicos como cor da pele, cabelo de natureza crespa, nariz e lábios em formatos característicos.
Portanto, a Comissão Recursal de Heteroidentificação decidiu manter a decisão da Comissão de Heteroidentificação de negar a matrícula do candidato no sistema de cotas.
III – CONCLUSÃO Após a ANÁLISE PRESENCIAL realizada pelos membros da Comissão Recursal de Heteroidentificação, chegou-se ao seguinte parecer recursal: a autodeclaração do (a) candidato (a) não condiz com seus traços fenotípicos, constatando-se que o (a) recorrente não se enquadra nos critérios de identificação.
Por unanimidade, a Comissão Recursal de Heteroidentificação decidiu não recomendar a matrícula do candidato no curso de MEDICINA da UNIFAP.” Diante dessas informações, entendo que a IES, ao concluir que não encontrou marcadores fenotípicos de negritude (preta ou parda), quis com isso dizer, ainda que de forma breve e direta, que não foram encontradas quaisquer das características descritas no edital, enquanto “traços de negritude”, como o cabelo crespo, nariz largo e lábios grossos.
Com efeito, o processo seletivo é claro quanto à necessidade de que o candidato preencha “ao menos alguns” dos marcadores citados, isto é, não basta a presença de um único elemento característico, como o tom de pele, mas de outros, definidos como “traços de negritude”.
Tal fato leva à conclusão de que a decisão da Comissão de Heteroidentificação foi no sentido de que a candidata não apresentou, aos olhos do colegiado, características fenotípicas suficientes e compatíveis com as exigidas para o preenchimento das vagas destinadas às cotas raciais de negros de cor preta e parda.
Veja que a decisão foi tomada com base em análise realizada por cinco membros designados para compor Comissão criada especialmente para esse fim, nos termos do art. 6º, incisos I a IV, da Instrução Normativa n. 4/2018 do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão/Secretaria de Gestão de Pessoas, e que é definida por cidadãos de reputação ilibada, preferencialmente experientes na temática, atendendo ao critério da diversidade.
Na ocasião, em que seria considerada a aparência da pessoa como um todo, com ênfase na cor e outros atributos que permitem a associação à afrodescendência, como textura de cabelo e traços faciais, a manifestação negativa, tal como feita, associada à previsão do edital de regência, não deixa de estar fundamentada, porquanto nega, ainda que de forma sintética, a presença de qualquer traço de negritude.
O caso sequer se enquadra dentre aqueles em que a negritude declarada é controvertida ou ao menos posta em dúvida.
Cumpre anotar que ao longo do processo, embora pudesse, a parte silenciou acerca dos marcadores fenotípicos que porventura considerasse possuir, e que supostamente não teriam sido tomados em consideração pela Comissão.
Ressalto, no ponto, que a mera sustentação de afrodescendência é irrelevante, uma vez que a análise é feita com base em critérios fenotípicos e individualizados, consoante previsto no edital.
Não há dúvidas de que a reserva de cotas é uma ação afirmativa importante no combate à desigualdade racial no Brasil.
Porém, a declaração do candidato como sendo de cor parda ou negra detém presunção relativa de veracidade, passível de avaliação para aferição de sua veracidade.
De fato, a definição e a classificação da cor da pele na sociedade brasileira é tarefa complexa, vez que inexistem bases objetivas e totalmente seguras para a afirmação, em razão da grande miscigenação presente no território nacional, e, apesar do esforço empreendido na adoção de critérios e métodos de avaliação, é forçoso reconhecer que o processo ainda possui forte carga subjetiva, algo inerente ao próprio sistema. É neste contexto que ganha relevância o papel das denominadas comissões de verificação ou de heteroidentificação.
A vasta jurisprudência sobre o tema autoriza a interferência, pelo Poder Judiciário, nas decisões das Comissões de Avaliação Étnico Racial, seja em concursos para ingresso no serviço público, seja em provas de vestibulares, quando demonstrada a irrazoabilidade de eventual avaliação que reprovou candidato autodeclarado negro/pardo.
No caso concreto, porém, o conjunto probatório não evidencia a existência de ilegalidade do procedimento e, tampouco, de irrazoabilidade na decisão da Comissão de Heteroidentificação, na medida em que a Autora, de fato, não possui características (no plural) e aspectos fenotípicos de pessoa da etnia-raça negra parda.
Pela apreciação das provas documentais, na visão de homem médio, entendo não haver evidências de que a autora possui características fenotípicas de negro ou pardo.
Apenas o tom da pele - levemente morena – ou o cabelo – ondulado – não é suficiente para demonstrar que a candidata condiz com o grupo racial que autodeclara pertencer.
Diferentemente de outros casos, em que o edital determinou como única exigência para a participação pelo sistema de cotas que os candidatos, no ato da inscrição, preenchessem uma autodeclaração, no processo em exame houve previsão expressa de que além da autodeclaração, o interessado deveria reunir características fenotípicas negras; ainda, não bastaria a presença de um marcador, mas de “alguns traços de negritude”.
Logo, ainda que o tom de pele não seja branco, tal característica, como única presente, não seria suficiente.
Destaco que o objetivo das políticas afirmativas é compensar prejuízos discriminatórios, e não criar privilégios.
Conforme votos proferidos no julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental 186/DF, que analisou a constitucionalidade do sistema de reserva de vagas com base no critério étnico-racial, “[...] no Brasil viceja o preconceito de marca, em que o fenótipo, a aparência racial é o critério da discriminação, consideradas não só as nuanças da cor como os traços fisionômico” (Ministra Rosa Weber) “[...] a discriminação negativa é, em qualquer parte do mundo, como fenômeno humano, ligada sobretudo às diferenças físicas, às diferenças ditas fenotípicas” (Ministro Cézar Peluso) “[...] em se levarem em conta elementos genotípicos para permitir a entrada, na universidade, de quem, pelas características fenotípicas, nunca foi por estas discriminado.
Ninguém discrimina alguém porque terá recorrido a exame genético e aí descoberto que a pessoa tenha gota de sangue negro.
Isso não faz sentido.
O candidato que sempre se apresentou na sociedade, por suas características externas, como não pertencente, do ponto de vista fenotípico, à etnia negra, mas que genotipicamente a ela pertença, a mim me parece que não deva nem possa ser escolhido e incluído na cota, pois nunca foi, na verdade, discriminado” (Ministro Gilmar Mendes) Sob essa perspectiva, o controle externo não é somente uma possibilidade, mas um dever do Estado, a fim de garantir a correta execução dessa política pública, vale dizer, garantir que as vagas destinadas às cotas sejam ocupadas por seus reais destinatários, isto é, pessoas que, por suas características externas, convivem com o preconceito e a discriminação e/ou tem grande potencial de sofrê-la.
Sob esse aspecto, a ancestralidade assume pouco ou nenhum relevo.
Não passa despercebido por este Juízo que a autodeclaração é preponderante, como, aliás, verifica-se em diversos outros casos; contudo, deve ser considerada em conjunto com os demais elementos dos autos, que indicam, de fato, que o autor não preenche os requisitos para a ação afirmativa.
Com efeito, a autodeclaração pode dar-se sob perspectivas diversas, a saber, a: I - raça documental (como a pessoa está registrada); II - raça privada (como a pessoa se percebe); III - raça pública (como a pessoa está preparada para ser reconhecida); ou IV - raça social (como ela é identificada sob a perspectiva étnico-racial no âmbito social).
Para os fins das políticas afirmativas, apenas a raça social é relevante, enquanto critério para a racialização subordinante que se visa superar.
Assim, para que um candidato seja considerado como da etnia-raça negra parda é necessário que apresente características fenotípicas do grupo étnico e que tais características sejam perceptíveis por si e por terceiros, o que não é o caso da autora.
Nesse contexto, a comissão de aferição da validade da autodeclaração realiza uma heteroidentificação, mas tão somente no sentido de identificar se o autodeclarado negro (preto ou pardo) pode ser, pelo seu fenótipo, reconhecido como tendo a identidade étnico-racial negra deflagradora da discriminação e, por isso, destinatária da ação afirmativa.
A candidata deve, portanto, reunir elementos suficientes para ser lida socialmente como negra, e, considerando que de acordo com o IBGE pardo é negro, tenho, sob essa perspectiva, que quem se inscreve em um processo seletivo como pardo automaticamente está concorrendo a uma vaga destinada para negros, dada a necessidade de manifestar traços de negritude.
A propósito, para efeito da Lei 12.288/10, considera-se, de acordo com o inciso IV do § único do seu art. 10, que a população negra consiste no conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ou que adotam autodefinição análoga.
Nessa esteira, permanecem, portanto, inabalados os fundamentos da decisão da Comissão Recursal de Heteroidentificação, impondo-se a revogação da tutela de urgência.
Dessa forma, considerando a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos e, principalmente, a presumida expertise da comissão formada para o fim exclusivo de proceder à avaliação dos aspectos fenotípicos do candidato, não se vislumbra na hipótese a alegada erronia na rejeição da autodeclaração do autor como pessoa negra.
Não vislumbro, ainda, ilegalidade no aspecto formal da decisão, pois, embora sucinta, a motivação permite entendimento, não oferecendo comprovado prejuízo ao candidato.
Por fim, vale rememorar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sedimentou orientação no sentido de que as regras editalícias, consideradas em conjunto como verdadeira lei interna do certame, vinculam tanto a Administração como os candidatos participantes (AgInt no RMS 65.561/BA, Rel.
Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 31/05/2021, DJe 02/06/2021).
No caso em exame, não basta ser pardo, mas ser pardo com marcadores fenótipos de pessoa negra, conforme previsto no edital, não importando a ancestralidade.
Na espécie, a comissão realizou o seu trabalho seguindo o critério da raça social e decidiu de forma fundamentada e razoável pelo não preenchimento dos requisitos para participar do processo seletivo, nas vagas destinadas a candidatos pardos, sendo a prova constituída em Juízo insuficiente para desautorizar a análise administrativa.
Verificada por entrevista pessoal, junto a Comissão Avaliadora, e declarada que a parte autora é inapta para concorrer ao sistema de cotas para negros/pardos, tendo em vista não ostentar as características fenotípicas (critério de avaliação estabelecido no edital), bem como observada que houve oportunidade para a interposição de recurso, garantindo o contraditório e ampla defesa, deve ser mantida a decisão administrativa que lhe negou matrícula a uma das vagas na condição de cotista, não cabendo ao Poder Judiciário adentrar no mérito administrativo, substituindo os critérios técnicos utilizados pela Comissão avaliadora.
Destarte, forçoso é convir que a Autora não logrou demonstrar o direito alegado, restando claro, com a instrução processual, que a parte não preenche os requisitos.
III - DISPOSITIVO Ante o exposto, julgo IMPROCEDENTES os pedidos iniciais, extinguindo o processo nos termos do art. 487, inciso I, do Código de Processo Civil.
Revogo a tutela de urgência conferida por meio de decisão de ID. 1605761874, pelos mesmos fundamentos da presente sentença.
Condeno a autora ao pagamento das custas judiciais e dos honorários advocatícios de sucumbência, fixados em 10% (dez porcento) sobre o valor da causa, atualizado, com base no art. 85, §3º e 4º, inciso III, do Código de Processo Civil.
Suspensa, contudo, a exigibilidade, diante da gratuidade de justiça concedida.
Transitado em julgado, arquivem-se os autos.
Publique-se.
Intimem-se.
Macapá/AP, (data da assinatura eletrônica).
Assinado Eletronicamente JUCELIO FLEURY NETO Juiz Federal -
10/05/2023 00:00
Intimação
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Seção Judiciária do Amapá 6ª Vara Federal Cível da SJAP PROCESSO: 1011488-73.2023.4.01.3100 CLASSE: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL (7) POLO ATIVO: CARINA DA SILVA SAMPAIO REPRESENTANTES POLO ATIVO: NADSON RODRIGO DOS SANTOS COLARES - AP2740 POLO PASSIVO:FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ DECISÃO Trata-se de ação de conhecimento, com pedido de tutela de urgência, proposta por CARINA DA SILVA SAMPAIO em face da FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ.
Narra, em síntese, na petição inicial (id 1593134384) que: 2.
A requerente é parda, filha de pais pardos e avos negros.
Concorreu a vaga no curso de medicina da Unifap e fez a autodeclaração de sua cor parda.
Tem sido indeferida sua matrícula eis que ao talante da comissão de heteroidentificação da UNIFAP, não preenchia os requisitos. 3.
Até a presente data não teve acesso aos fundamentos que levaram a comissão a negar sua matrícula.
Entregaram apenas a súmula da decisão sem a presença de fundamentação, o que viola o estatuído no artigo 93,IX da Constituição Federal. (...) 6.
A autora, filha de pais pardos e avos negros, descendente de pretos e mãe parda, fez a autodeclaração e apresentou todos os documentos necessários para a concorrer à vaga (...) 7.
Sua inscrição, desse modo, foi negada ao argumento que não cumpria os requisitos para alcançar o fenótipo que se iguala ao ser pardo (parecer em anexo). (...) 12.
Exa., a segue a abaixo e em anexo Declaração de Heteroidentificação Fenotípica emitida pela Polícia Técnica Cientifica do Estado do Amapá a qual que a requerente esta claclassificado como “PARDA”.
Em sede de tutela de urgência requer: 18.
Diante disso e pelo fato de já terem começado aulas, urge a necessidade de conceder tutela de urgência para sustar os efeitos da decisão da Comissão de heteroidentificação e determinar que a UNIFAP proceda à matricula da requerente até ulterior deliberação deste juízo, eis que presentes o perigo da demora considerada a exiguidade do tempo e a fumaça do bom direito consistente no formal e expresso reconhecimento por autoridade científica da presença dos fenótipos que a caracterizam parda. (grifei) Requer, ainda, a concessão do benefício da gratuidade de justiça.
A inicial veio instruída com documentos.
Vieram os autos conclusos.
DECIDO.
II – FUNDAMENTAÇÃO Há declaração da parte autora de que não tem condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família.
Fica, pois, deferido o pedido de gratuidade de justiça, com fundamento no art. 98 do Código de Processo Civil (Lei Federal nº 13.105/2015), assumindo a mesma todas as responsabilidades - civis, administrativas e criminais - no caso de falsidade (art. 2° da Lei Federal n° 7.115/1983).
O deferimento da tutela de urgência pressupõe o preenchimento dos requisitos da probabilidade do direito e do perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, consoante se depreende do art. 300, caput, do Código de Processo Civil.
Adianto que há elementos que evidenciam a probabilidade do direito invocado pela parte autora (fumus boni iuris), bem assim se faz presente o perigo de dano ao resultado útil do processo (periculum in mora), o que autoriza a concessão da tutela provisória de urgência.
Com efeito, almeja a parte autora, em sede de tutela de urgência, a obtenção de provimento jurisdicional tendente a garantir-lhe o direito de matrícula no curso superior escolhido, com a implementação da ação afirmativa para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, nos termos do edital de regência.
O ponto nodal da controvérsia cinge-se em perquirir se compete ao Poder Judiciário admitir candidato eliminado de processo seletivo em razão de não enquadramento em cotas reservadas a estudantes autodeclarados pretos, pardos ou indígenas, sem que isso ocasione a substituição da Comissão de Heteroidentificação ou mesmo represente indevida intromissão na discricionariedade do mérito do ato administrativo conferido às Universidades em razão de sua autonomia didático-científica.
Inicialmente, cumpre consignar que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial”, nos termos do art. 207, caput, da Constituição Federal, combinado com o art. 53 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (Lei Federal nº 9.394/1996).
Insta salientar, ainda, que a garantia de padrão de qualidade do ensino é um dos princípios do sistema educacional brasileiro, conforme disposição do art. 206, VII, da Constituição Federal, o que, em tese, imprime as universidades o dever constitucional de zelar pela instituição de critérios de qualidade de ensino e avaliação no âmbito de suas competências educacionais, inclusive na formação de docentes e aferição dos critérios de afirmação para seus discentes.
Nesse sentido, importante destacar o entendimento do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, vejamos: “AGRAVO DE INSTRUMENTO.
LIMINAR.
AUSÊNCIA DOS REQUISITOS.
SISTEMA DE COTAS.
Os critérios de matrícula, avaliação e promoção configuram atos discricionários das universidades, que podem ser escolhidos com liberdade, seguindo disposições previamente estabelecidas no Regimento Geral da Instituição e respeitada a legislação de regência e a Constituição Federal.
A Lei nº 12.711/2012 garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades federais e institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, sendo que os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.
No edital UFMS/PROGRAD Nº 194 previu que o candidato poderia ser convocado a qualquer momento para a comprovação dos requisitos junto a uma comissão verificadora específica da UFMS.
Agravo interno prejudicado e agravo de instrumento a que se dá provimento. (AGRAVO DE INSTRUMENTO ..SIGLA_CLASSE: AI 5021865-71.2020.4.03.0000 ..PROCESSO_ANTIGO: ..PROCESSO_ANTIGO_FORMATADO:, ..RELATORC:, TRF3 - 4ª Turma, DJEN DATA: 06/05/2021 ..FONTE_PUBLICACAO1: ..FONTE_PUBLICACAO2: ..FONTE_PUBLICACAO3:.) (sublinhei).
Ademais, a Lei Federal nº 12.711/2012, ao disciplinar o ingresso dos estudantes nas universidades federais, promoveu ações afirmativas voltadas a inclusão de pessoas autodeclaradas pretas, pardas, indígenas e com deficiência, conforme dispõe em seu art. 3º: “Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016) (grifei).
Ocorre que o IBGE não estabelece quais as características definidoras de cada um dos quesitos de cor ou raça que atualmente utiliza (negro, pardo, indígena, amarelo ou branco).
Ou seja, não há em vigor diploma normativo que defina critérios objetivos para diferenciar pessoas negras, pardas, indígenas, amarelas ou brancas.
Na verdade, o IBGE utiliza apenas a autodeclaração como método de determinação da cor ou raça de cada indivíduo.
Nesse contexto, pode-se afirmar que o atual cenário legislativo estabelece como única forma de determinação de cor ou raça autodeterminação, conforme, aliás, expressamente dispõe o art. 2º da Lei Federal nº 12.990/2004 (Estatuto da Igualdade Racial).
Ainda que se pudesse considerar como válida a possibilidade da Administração Pública suprir a lacuna legislativa e criar critério de diferenciação de cor entre os candidatos, tais critérios deveriam ser expressa e claramente previstos no Edital do certame, o que não ocorre no presente caso.
O instrumento editalício (Edital nº 23/2023-DERCA/UNIFAP) limitou-se a estabelecer, o seguinte: 7.
Em obediência à Normativa nº 4, de 6 de Abril de 2018, do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, a UNIFAP constituirá Comissão que procederá a heteroidentificação complementar aos candidatos cotistas (pretos, pardos ou indígenas).
Canditatos autodeclarados pardos, deverão ter fenotipia de pessoas negras. 7.1.
A Comissão de Heteroidentificação promoverá a análise presencial dos candidatos autodeclarados Pretos, Pardos ou Indígenas, e que forem habilitados na Chamada Pública, no dia 13/04/2023 às 08h:30min, em uma das salas do Derca, conforme cronograma constante no ANEXO VI.
A lista dos candidatos indeferidos pela Comissão de Heteroidentificação, será publicada no dia 13/04/2023, na página deste edital. 7.2.
Após a publicação, os candidatos indeferidos terão até o dia 14/04/2023 às 23h59min, para interpor recurso junto à Comissão Recursal, encaminhando ao email [email protected]. 7.3.
A Comissão Recursal, promoverá nova análise presencial, no dia 17/04/2023, às 08h:30min, em uma das salas do DERCA, a todos os candidatos que interporem recurso. 7.4.
O resultado da avaliação da Comissão Recursal, será divulgado na página deste edital, no dia 17/04/2023. (destaquei) Daí se depreende, não ser efetivamente possível compreender quais os critérios objetivos que serão utilizados para apreciar as características físicas, morfológicas e fisiológicas dos candidatos.
Nesse passo, com suporte no item acima descrito, a Comissão Recursal de Heteroidentificação do PS 2023 da Unifap, ao emitir parecer acerca da autodeclaração apresentada pela parte autora, argumentou que: “Embora o (a) candidato (a) tenha alegado questões alusivas à sua ancestralidade, como pais negros, avôs e bisavôs negros, e/ou sentimento de pertencimento ao grupo étnico-racial, buscando legitimar sua condição de preto/pardo, o candidato não demonstrou as características fenotípicas necessárias para preencher a vaga.
O candidato não comprovou, por meio documental e/ou cópias de fotos e vídeos, o conteúdo do recurso e, no caso específico, pela análise presencial, que possui fenótipo com algumas características de afrodescendência, como mesmo grupo/estereótipo, traços físicos como cor da pele, cabelo de natureza crespa, nariz e lábios em formatos característicos.
Portanto, a Comissão Recursal de Heteroidentificação decidiu manter a decisão da Comissão de Heteroidentificação de negar a matrícula do candidato no sistema de cotas”; e concluiu que: “Após a ANÁLISE PRESENCIAL realizada pelos membros da Comissão Recursal de Heteroidentificação, chegou-se ao seguinte parecer recursal: a autodeclaração do (a) candidato (a) não condiz com seus traços fenotípicos, constatando-se que o (a) recorrente não se enquadra nos critérios de identificação.
Por unanimidade, a Comissão Recursal de Heteroidentificação decidiu não recomendar a matrícula do candidato no curso de MEDICINA da UNIFAP.” (id Num. 1604448860), e que, por isso, não se enquadrava na reserva de vaga prevista pela Lei Federal nº 12.711/2012.
Como se vê, a referida Comissão, com exceção do “cabelo de natureza crespa” não apontou critérios objetivos para fundamentar a sua conclusão, pois não há como deixar de considerar que é puramente subjetiva qualquer avaliação de raça ou cor pela análise de “marcadores fenotípicos de negritude (preta ou parda)”, máxime em considerando a robusta prova documental que instrui a petição inicial, o que torna nula a decisão administrativa que desqualificou a autodeclaração de cor apresentada pela parte autora.
Com isso, embora as características físicas aferíveis de um indivíduo se constituam em critério primordial para decidir vaga pelo sistema de cotas nas universidades públicas, a autodeclaração do candidato tem primazia sobre a decisão da comissão de verificação racial.
Afinal, a autodeclaração busca o direito de pessoas que, mesmo sem fenótipo marcante, experimentam os efeitos do preconceito racial na sua trajetória de vida.
Nesse sentido, com a prevalência deste entendimento, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) declarou nula a decisão da Comissão Permanente de Verificação da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que não homologou a autodeclaração de uma candidata.
Confira-se: “ADMINISTRATIVO.
INGRESSO NO ENSINO SUPERIOR PÚBLICO.
COTA SOCIAL.
O sistema de cotas é meio de exercício de discriminação positiva, afigura-se inegável que o intento da ação é o de beneficiar aqueles considerados como socialmente desfavorecidos, a fim de viabilizar a sua inclusão social e, especificamente no caso, seu ingresso nos quadros acadêmicos de Universidades Públicas.
Em que pese os traços fenótipos serem critérios primordiais para a aferição da validade da autodeclaração, não se olvida que a primazia da autodeclaração busca justamente assegurar ao indivíduo que, ainda que não detenha traços externos marcantes, tenha experimentado os efeitos nefastos do preconceito racial durante seu desenvolvimento humano” (Apelação Cível nº 5022677-97.2018.4.04.7100/RS, Relatora Desembargadora Federal Vânia Hack de Almeida, de 09/10/2019).
A relatora da apelação supra, em seu voto, destacou que não é papel do Poder Judiciário fixar critérios para as políticas afirmativas, que devem ficar a cargo do Poder Executivo.
Entretanto, a inexistência de regulamentação específica do procedimento de aferição não impede que o Judiciário se manifeste a partir da análise da legalidade e da finalidade desta política pública, principalmente levando em conta o princípio da dignidade humana, guindado a critério orientador da fiscalização na Administração Pública, segundo o Colendo Supremo Tribunal Federal. "Com efeito, especialmente em razão das características do preconceito racial na sociedade brasileira e de seus efeitos históricos os quais se encontram, infelizmente, incrustados no íntimo da população objeto do preconceito, a autodeclaração representa não só a confirmação de um fenótipo, mas também a exteriorização do sentimento de pertencimento a um determinado grupo social estigmatizado pelo preconceito", escreveu no acórdão.
Para Vânia, os séculos de miscigenação dificultam o estabelecimento de parâmetros objetivos para que se possa definir com precisão a parcela da sociedade brasileira considerada preta ou parda.
Tal dificuldade científica, contudo, não pode ser obstáculo para uma efetiva política de reparação histórica a esta parcela da população estigmatizada.
ISSO POSTO, DEFIRO o pedido de tutela provisória de urgência para suspender a decisão da Comissão de Heteroidentificação do Processo Seletivo Unifap 2023 que deixou de considerar a parte autora como parda para os fins da Lei Federal nº 12.711/2012, determinando, por via de consequência, sua matrícula no curso escolhido até ulterior deliberação deste Juízo caso preenchidos os demais requisitos para tanto.
Intime-se a Unifap, por mandado, ao integral e imediato cumprimento desta decisão.
Sem prejuízo, cite-se a parte ré para, querendo, no prazo legal, apresentar defesa, bem como das partes para, no prazo de até 15 (quinze) dias (prazo dobrado em relação a Unifap), especificarem eventuais outras provas que pretendam produzir em instrução ao feito, declinando sua correspondente finalidade, sob pena de indeferimento.
Fica a parte autora autorizada a protocolar a presente decisão junto a Unifap, juntando aos autos o comprovante; a autenticidade poderá ser comprovada em consulta ao site do PJe do TRF da 1ª Região.
Macapá/AP, data da assinatura digital. (Assinado Eletronicamente) HILTON SÁVIO GONÇALO PIRES Juiz Federal -
03/05/2023 18:01
Recebido pelo Distribuidor
-
03/05/2023 18:01
Distribuído por sorteio
Detalhes
Situação
Ativo
Ajuizamento
03/05/2023
Ultima Atualização
17/11/2023
Valor da Causa
R$ 0,00
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