TRF1 - 1001848-26.2022.4.01.3506
1ª instância - Formosa
Polo Passivo
Partes
Advogados
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Assistente Desinteressado Amicus Curiae
Advogados
Nenhum advogado registrado.
Movimentações
Todas as movimentações dos processos publicadas pelos tribunais
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09/01/2024 00:00
Intimação
Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Formosa-GO Subseção Judiciária de Formosa-GO 1001848-26.2022.4.01.3506 REINTEGRAÇÃO / MANUTENÇÃO DE POSSE (1707) AUTOR: ASSOCIACAO QUILOMBO KALUNGA ASSISTENTE: FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES, INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA - INCRA Advogado do(a) AUTOR: ANDREA GONCALVES SILVA - GO44639 REU: GILIARDE SOUSA DE MESQUITA ATO ORDINATÓRIO De ordem do MM Juiz Federal, tendo em vista o trânsito em julgado da sentença, intimem-se as partes que requeiram o que entenderem de direito no prazo de dez dias.
Nada sendo requerido, remetam-se os autos ao arquivo.
Formosa - GO, data da assinatura eletrônica.
KELIANE MARTINS DE ATAIDES Servidor(a) -
25/10/2023 00:00
Intimação
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Formosa-GO Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Formosa-GO SENTENÇA TIPO "A" PROCESSO: 1001848-26.2022.4.01.3506 CLASSE: REINTEGRAÇÃO / MANUTENÇÃO DE POSSE (1707) POLO ATIVO: ASSOCIACAO QUILOMBO KALUNGA e outros REPRESENTANTES POLO ATIVO: ANDREA GONCALVES SILVA - GO44639 POLO PASSIVO: GILIARDE SOUSA DE MESQUITA SENTENÇA I.
RELATÓRIO Trata-se de ação de reintegração de posse, com pedido de tutela provisória de urgência, proposta pela ASSOCIAÇÃO QUILOMBO KALUNGA - AQK em face de GILIARDE SOUSA DE MESQUITA, objetivando a reintegração de posse do imóvel denominado Fazenda Hema, no município de Teresina de Goiás/GO, que teria sido esbulhada pelo requerido.
Afirma que a presente demanda versa sobre uma parte de terras de 05 (cinco) alqueires da Fazenda Hema, registrada sob a matrícula 3.214 no Cartório de Registro de Imóveis de Teresina de Goiás, tendo como proprietário Zacarias Pereira das Virgens.
Narra que a Fazenda Hema ou Ema, em sua totalidade, está inserida no perímetro de delimitação e demarcação do Território Quilombola Kalunga e que na área objeto da presente demanda, residem 05 (cinco) famílias Kalunga, representadas por Eva Bispo da Silva, José Fernandes Pereira das Virgens, Maria Bispo e Sila dos Santos Rosa.
Diz que o imóvel ainda não foi desapropriado e que no ano de 2007, José Pereira das Virgens, filho do Sr.
Zacarias, também Kalunga, requereu ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA a desapropriação do imóvel.
O processo foi autuado sob o número 54700.001336/2007-14, porém está paralisado desde o ano de 2012.
Aduz que o titular do domínio, Sr.
Zacarias, era Kalunga, sua família já vivia no imóvel há décadas, sendo titular de outras propriedades vizinhas à área objeto do feito.
Defende que os Kalunga sempre estiveram no exercício da posse em toda a fazenda Hema, ou Ema e, após o falecimento de Zacarias, a posse continuou sendo exercida pelos seus herdeiros, filhos, e posteriormente netos.
Alega que em meados de fevereiro de 2021 tomou conhecimento de que o requerido estava ocupando o imóvel objeto da presente demanda.
Segundo rumores, este teria adquirido o direito de posse por compra feita ao Sr.
Pedro Gomes de Silva, que por sua vez teria comprado o direito de posse de Ronaldo, um dos filhos do Sr.
José Pereira das Virgens, e, portanto, neto do Sr.
Zacarias.
Salienta que o imóvel ora esbulhado era ocupado não só por Ronaldo, mas por outros filhos do Sr.
José Pereira das Virgens, que também possui moradia e produção na Fazenda Ema.
No entanto, muito embora não possa atestar que a informação é procedente, seria fato que um não Kalunga estaria ocupando indevidamente um imóvel de propriedade e posse dessa comunidade quilombola.
Argumenta que em sendo verdadeira a informação de que o requerido comprou um direito de posse, de acordo com as normas legais vigentes relativas a terras quilombolas, bem como o Estatuto Social e o Regimento Interno da requerente, não há qualquer permissão para venda de posses no território, já que a posse é de natureza coletiva e os títulos de domínio quando emitidos são títulos pro-indivisos e ficam sob a tutela da requerente.
Relata que para resolver o conflito, assim que tomou conhecimento do fato, providenciou a Notificação Extrajudicial do requerido para a desocupação do imóvel no prazo de quinze dias, dada a ocupação de forma ilegal, por tratar-se de área para uso exclusivo da Comunidade Kalunga.
A notificação foi efetivada pelo Oficial de Justiça do Cartório de Teresina de Goiás/GO, contudo, o requerido quedou-se inerte em atender ao pedido de desocupação do imóvel e informou a um dos componentes da Diretoria Executiva da AQK que não desocuparia o imóvel, a não ser por ordem judicial.
Defende que os quilombolas transformaram as terras ocupadas como meio de resgate de sua cultura e lembranças da terra natal “deixada”, enquanto posteridade afrodescendente e que esta forma de viver foi passada às gerações vindouras, de modo que, hodiernamente, os remanescentes quilombolas utilizam o imóvel para revivificar os seus modos de criar, fazer e viver (art. 216, inciso II, CF) de sua terra, de onde os seus antecessores foram violentamente retirados.
Sustenta que os Kalunga se tornaram com o passar dos anos, uma comunidade negra rural que agrupa descendentes de escravos ligados entre si pela ancestralidade comum, partilhando uma herança cultural e material, uma visão de mundo que envolve valores e lhes conferem uma referência presencial, no sentido de ser e pertencer a um grupo negro particular, associado a um lugar de origem histórica.
Rememora que o Estado de Goiás, em 10 de janeiro de 1996, editou a Lei Complementar nº. 19, reconhecendo a área em comento como remanescente de quilombo a comunidade que ali reside desde o século XVIII.
Invoca, ainda, as disposições da Medida Provisória nº 1.049/2000, que autorizou a Fundação Palmares a emitir o título de reconhecimento de domínio nº 004/2000 das terras ocupadas em 17/04/2000 em favor deste grupo social e que a titulação da Fundação Palmares teve por base Relatório Histórico-antropológico atestando que a posse dos remanescentes do Quilombo Kalunga vem de praticamente 300 anos.
Ressalta que como direito real que é, no que diz respeito às comunidades quilombolas, não teria advindo apenas o título expedido pela Fundação Cultural Palmares, uma vez que o artigo 68 do ADCT já garante de plano a propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, despontando as atividades do Estado (representada pela FCP) com o intuito de concretizar o comando constitucional, apenas de natureza declaratória, e não constitutiva.
Acrescenta que a propriedade, nesses casos, era um direito subjetivo preexistente à promulgação do Texto Constitucional, já que o termo “propriedade definitiva” constante no referido artigo constitucional remete justamente à conclusão de que já havia uma posse existente, que agora, deve ser reconhecida, conferindo então o devido título de propriedade, para maior segurança jurídica.
Sustenta que o artigo 68 do ADCT já garante a propriedade aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos.
Afirma que a AQK dentre outras atribuições, faz a gestão desta distribuição dos quilombolas reconhecidos como Kalunga para ocuparem as terras disponíveis, em consonância com o Estatuto Social e o Regimento Interno da Associação Quilombo Kalunga, que regem a forma de uso e ocupação das terras que são ocupadas historicamente pelo povo Kalunga.
Obtempera que a Constituição Federal prevê que nos artigos 215 e 216 que as manifestações afrodescendentes devem ser preservadas por pertencer ao patrimônio histórico-cultural material e imaterial, integrando nossa civilização, e portanto, interessa à coletividade a sua proteção.
A garantia da posse e propriedade dos quilombolas seria apenas uma consequência de vários motivos determinantes, e um deles seria a preservação de valores culturais, sociais da etnia negra (arts. 215 e 216 da CF e artigo 68 do ADCT).
Registra que essas disposições devem ser interpretadas dentro de um universo de causa e efeito, de forma que tais dispositivos constitucionais evidenciariam, segundo argumenta, o direito que as comunidades quilombolas tem de exercerem a posse e propriedade plena das terras por elas ocupadas e o dever público de atuar ativamente em favor desse reconhecimento.
Salienta que a posse da área esbulhada tem por finalidade a manutenção da vida das pessoas que pertencem à comunidade Kalunga através da criação de animais para a produção de carne e leite para o consumo da população local, cultura de alimentos como o arroz, milho, gergelim, banana, mandioca, e outros, de forma agroecológica, sem uso de agrotóxicos, com trabalho manual e familiar, respeitando a vida em comum com a natureza e observando as regras da comunidade, a qual tem na requerente sua referência.
Afirma que o povo Kalunga é extremamente ordeiro e pacífico e agora se vê esbulhado da sua terra, que é muito mais que uma posse, é um território em que enceta uma outra forma de tratar com o planeta.
Certamente, o modo de viver é que consegue preservar as riquezas naturais (águas, plantas e animais) do território, que é riquíssimo e, que sob constantes ameaças, pode até acabar.
Resume a argumentação dizendo que ainda que haja um negócio jurídico que foi firmado entre um Kalunga e um terceiro, esse ato não deve ser impedimento para o deferimento da presente ação, dada a situação peculiar do imóvel, ou seja, ser um imóvel inserido dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, e portanto, deve ser mantido sob a posse dos moradores do sítio, conforme estabelecido em lei.
Assim, segundo conclui a autora, nenhuma pessoa, ainda que reconhecidamente Kalunga, e nem mesmo a própria requerente, está autorizada a alienar qualquer área dentro do SHPCK, isto devido ao caráter inalienável do bem.
Deste modo, o negócio jurídico firmado entre o Kalunga que residia no imóvel (Ronaldo – filho do Sr.
José Pereira das Virgens) e terceiros é negócio jurídico inválido, ainda que seja herdeiro (neto) do titular do domínio.
A respeito do esbulho narrado, relata que as invasões ocorridas dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem sido embasada em títulos de propriedade.
No caso em tela, o esbulho estaria devidamente comprovado, porque o requerido foi devidamente notificado pela Requerente a desocupar o imóvel em 04/05/2021 para, no prazo de 15 (quinze) dias a partir da data da notificação, o que não foi cumprido.
Salienta que o requerido vem causando grandes conflitos na área.
De acordo com os relatos dos Kalunga que residem nas proximidades, o requerido se utiliza do imóvel nos fins de semana com fins recreativos, ali faz festas que quando ocorridas provocam muitas perturbações para a população local.
Diante dos fatos articulados, pugnou pela concessão de Gratuidade de Justiça e requereu a concessão de medida liminar, nos termos do art. 562, CPC, para reintegrar a associação autora na posse do imóvel denominado por Fazenda Hema, independente da manifestação de interesse no feito por parte do INCRA, Fundação Palmares e União, bem como para que o requerido se abstenha de ocupar o imóvel objeto da presente demanda, ou qualquer outro imóvel inserido no perímetro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, sob pena de multa, requisitando-se, caso necessário, a força policial necessária para promover a desocupação da área, na hipótese de resistência.
Em caráter principal, pediu a confirmação da medida liminar e protestou genericamente pela produção de provas.
Despacho ID 1170378273 determinou a intimação do INCRA e da Fundação Cultural Palmares para que informassem sobre o interesse no feito, bem como a intimação da autora para comprovar que faz jus à concessão da Gratuidade de Justiça requerida.
Petição da autora de ID 1177511264 juntou escriturações fiscais dos anos de 2019, 2020 e 2021 para comprovar a isenção de imposto de renda da pessoa jurídica.
Petições da Fundação Palmares e do INCRA ID 1214949293 e ID 1214987254, requerendo ingresso no feito na condição de assistentes simples da autora.
Decisão ID 1253922266 deferiu o pedido de reintegração de posse e a gratuidade da justiça à AQK.
Petição do Ministério Público Federal – MPF de ID 1268461769 requerendo sua inclusão no feito na qualidade de fiscal da ordem jurídica.
Petição da autora ID 1457039350 informando ter sido cumprida a carta precatória e a autora reintegrada na posse na data de 07/12/2022.
Carta precatória cumprida juntada (ID 1537666892).
Certificado que a parte requerida não ofereceu contestação (ID 1603131346).
Decisão de saneamento e organização do processo ID 1636027363 decretou a revelia da parte requerida e considerou o feito apto para julgamento antecipado do mérito.
Intimadas as partes, sem qualquer objeção delas, vieram os autos conclusos para julgamento. É o relatório.
Passo a fundamentar e decidir, nos termos do art. 93, IX, da Constituição Federal, e art. 489, § 1º do CPC.
II.
FUNDAMENTAÇÃO Processo em ordem estando presentes os pressupostos processuais e as condições da ação.
Não foram arguidas preliminares, tampouco há questões a serem pronunciadas de ofício.
Passa-se ao julgamento do mérito.
O processo encontra-se suficientemente instruído, possibilitando seu julgamento, por dispensar a produção de qualquer prova ulterior.
A controvérsia extraída dos autos diz respeito à tutela da posse da área rural de uma parte de terras de 05 (cinco) alqueires denominada Fazenda Hema, no Município de Teresina de Goiás/GO, registrada sob a matrícula nº 3.214 do Cartório de Registro de Imóveis de Teresina de Goiás.
A ação de reintegração de posse constitui instrumento de proteção conferido ao possuidor em caso de esbulho, isso é, em caso de perda da posse.
Quanto ao tema em discussão na lide, conforme o art. 1.210 do Código Civil, o possuidor tem direito a ser mantido na posse em caso de turbação, restituído no de esbulho, e segurado de violência iminente, se tiver justo receio de ser molestado.
Instrumentalizando o direito à proteção possessória, o art. 561 do CPC, estabelece os requisitos necessários à concessão da tutela possessória: Art. 561.
Incumbe ao autor provar: I - a sua posse; II - a turbação ou o esbulho praticado pelo réu; III - a data da turbação ou do esbulho; IV - a continuação da posse, embora turbada, na ação de manutenção, ou a perda da posse, na ação de reintegração.
Logo, para que se julgue procedente o pedido de reintegração da posse, é necessário que a parte autora prove sua posse anterior, ou seja, que detinha o poder fático sobre o bem, exercendo um ou alguns dos poderes inerentes à propriedade, sendo imprescindível, também, que demonstre a efetiva ocorrência do esbulho/turbação.
Pois bem.
O surgimento do Quilombo[1] Kalunga está ligado à história da província de Goyazes, que foi explorada por bandeirantes que desbravaram a região e deram início à atividade aurífera, que tiveram o negro como principal fonte de mão de obra escrava.
Os quilombos eram constituídos, inicialmente, por escravos fugidos e, posteriormente, por ex-escravos que procuravam terras para se abrigar após a decadência do ciclo do ouro e do advento da Abolição da Escravatura.
Teve início com a ocupação do local denominado Vão do Moleque.
O termo “Vão” traduz a existência de um vale, um vão entre os morros e serras, onde correm os rios da região, constituindo lugar propício para se esconder de capitães do mato e manter uma agricultura de subsistência, além de favorecer a utilização de várias rotas de fuga, seja pelos cursos d’água ou pelos morros.
Conforme entrevistas conduzidas por pesquisadores, durante o período colonial, grande parte do Vão do Moleque era, na realidade, uma fazenda dedicada à pecuária, denominada Fazenda Curriola, pertencente a Luciano Alves Moreira.
Já a região do Vão de Almas, ainda segundo eles, também seria uma Fazenda pertencente ao Barão Felipe de Arraias; o quilombo Kalunga se encontraria nos limites dessas fazendas pelo menos desde a década de 50 do século XIX.
Em razão disso, a região ficou conhecida como Vãos da Serra Geral, ambos habitados por diversas comunidades remanescentes de quilombos, que surgiram na região ainda no século XVIII.
Com o passar do tempo, famílias – formadas basicamente por ex-escravos - iam se distribuindo pelas encostas e vales do Rio Paranã.
Atualmente, a comunidade Kalunga pode ser dividida em quatro agrupamentos principais: Vão do Moleque, a noroeste; Vão de Almas, ao sul; Vão da Contenda, a nordeste; e Ribeirão dos Bois, ao sudeste, nos municípios de Cavalcante, Teresinha de Goiás e Monte Alegre.
Todos são formados por pequenos povoados como Contenda, Barra, Riachão, Sucuriú, Boa Sorte, Bom Jardim, Areia, São Pedro, Jataroba, Tarumã, Tinguizal, Caiçara, Lagoa, Terra Vermelha, Congonha, Altamira, Vargem, Ema, Taboca, Fazendinha, Maiadinha, Morro, Choco, Buriti Comprido, Córrego fundo, Vargem Grande, Borrachudo, Limoeiro, Sicuri, Ouro Fino, Brejão, Funil, Porcos, Prata, Alma, Diadema, Ribeirão dos Bois, Capela, Engenho II.
Segundo pesquisas antropológicas, as Comunidades Quilombolas são circunscritas e estabelecem íntima relação territorial com a terra em que habitam.
Dentro dessa perspectiva territorial, a posse da terra passa pelas várias gerações sem a adoção do procedimento formal de partilha, e sem que haja posse individualizada ou a propriedade como é reconhecida pela lei civil.
De acordo com os estudos da renomada geógrafa e historiadora Mari de Nazaré Baiocchi, a palavra “Kalunga” pode significar, em “Kalunga, o povo da terra”, o ideal de “um lugar sagrado que não pode pertencer a uma só pessoa ou família. É de todos prá’s horas de dificuldade”.
Como se vê, a posse da terra constitui elemento fundamental para a cultura quilombola Kalunga, conectada à própria necessidade de sobrevivência da comunidade.
Conforme define Vercilene Francisco Dias, mestra em Direito Agrário pela Universidade Federal de Goiás, “a luta pela regularização do território Kalunga se constitui, entre todas as lutas, a mais importante, pois, como costumamos dizer em nossas reivindicações, quilombola sem-terra não tem vida”.
Narra o pesquisador Francisco Octávio Bittencourt de Sousa que as demandas dos Kalungas por seu território começaram apenas em 1975, quase 30 anos após o avanço da grilagem sobre o território.
Naquele ano, os Kalungas recorreram ao Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás - IDAGO, em Goiânia, para fazer o primeiro requerimento de propriedade das terras que habitavam.
E, conforme consta do Protocolo de Intenções firmado entre o IDAGO e a Universidade Federal de Goiás (UFG), a primeira reivindicação da comunidade residiu no pedido para evitar a grilagem de suas terras.
Merece destaque que os quilombolas reivindicantes fizeram questão de registrar a escolha pela propriedade coletiva, nos seguintes termos: “queremos as terras sem o direito de vendê-las”, intenção calcada na ancestralidade da posse e na necessidade de preservar e proteger as comunidades tradicionais brasileiras.
Com as pesquisas de campo encetadas pela equipe de Mari Baiocchi, na década de 80, teve início a coleta de informações que resultou na delimitação geográfica do território Kalunga, com a produção do primeiro mapa traçado por Wânia Alencastro Veiga em 1982 e na primeira leva de publicações acadêmicas sobre grilagem do território Kalunga nos anos 90.
Como se vê, a invasão e grilagem de terras Kalunga não representa um movimento predatório recente.
A continuidade dos trabalhos de Mari Baiocchi e do hoje extinto IDAGO, resultou na aprovação da Lei Estadual nº. 9.541/1984, que dispunha sobre a discriminação ou arrecadação de terras devolutas do Estado, tendo sido sancionada, visando, entre outras áreas, à dos Kalunga; na Lei Estadual nº 9.904/1985, que autorizava o Chefe do Poder Executivo a doar terras à comunidade Kalunga; o art. 68 ADCT, que prevê a autoidentificação como um dos principais critérios para as comunidades remanescentes de quilombo reivindicarem seus direitos e o reconhecimento de seus territórios; e, finalmente, no reconhecimento da Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga (SHPCK) em 1991 pelo Estado de Goiás, por meio da Lei Complementar nº 11.409.
De acordo com a Lei Estadual nº 11.409/1991, ratificada pela LC nº 19/1996 e pelo Decreto Presidencial de 20 de novembro de 2009, que deram concreção ao disposto no art. 68 do ADCT, o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga[2] constitui posse originária e propriedade da comunidade quilombola Kalunga[3].
Veja-se a redação do aludido dispositivo da lei goiana: “Art. 1º - Constitui patrimônio cultural e sítio de valor histórico a área de terras situadas nos vãos das Serras do Moleque, de Almas, da Contenda-Calunga e Córrego Ribeirão dos Bois, nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, no Estado de Goiás, conforme estabelecem o § 5º do art. 216 da Constituição Federal e o art. 163, itens I e IV, § 2º da Constituição do Estado de Goiás.” Logo, desde a edição da aludida lei, de lege lata, o território nela mencionado é de posse exclusiva da comunidade Kalunga.
Assim, todo aquele que não pertença à comunidade e que habita ou desenvolve agropecuária no perímetro do SHPCK, sem autorização Kalunga, é considerado invasor.
De mais a mais, o Decreto nº 4.887/2003 disciplinando a matéria, traçou as diretrizes para o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes daquelas comunidades especificadas no art. 68 do ADCT.
Assim, restou consignado no art. 2º do referido diploma que remanescentes das comunidades dos quilombos seriam os grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.
Quanto ao território, os parágrafos 2º e 3º do art. 2º estabelecem: “§ 2º São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural. § 3º Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.” Cuida-se, como se vê, de posse secular, devidamente reconhecida pelo Poder Público, inclusive pelo Poder Judiciário, a exemplo do julgamento da ADI 3.239/DF, relatada pelo Ministro Cezar Peluso.
Ademais, o art. 14 da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT, internalizada pelo Decreto nº 5.051/2004, expressamente garante o reconhecimento dos direitos de propriedade e posse de terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados.
De acordo com a convenção, quando justificado, medidas deverão ser tomadas para salvaguardar o direito dos povos interessados de usar terras não exclusivamente ocupadas por eles às quais tenham tido acesso tradicionalmente para desenvolver atividades tradicionais e de subsistência.
Nesse contexto, a situação de povos nômades e agricultores itinerantes deverá ser objeto de uma atenção particular, cabendo aos governos tomar as medidas necessárias para identificar terras tradicionalmente ocupadas pelos povos interessados e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse.
Nesse contexto normativo, forçoso reconhecer que o direito de posse e propriedade Kalunga encontra demonstração sumária nas próprias disposições de índole internacional, constitucional, legal e infralegal, somadas ao reconhecimento da Comunidade Quilombola Kalunga como sítio histórico e patrimônio cultural por força de lei, devidamente delimitado geograficamente, ex vi legis.
Traçados esses contornos, tem-se que o direito possessório da parte autora encontra-se fundado nos aspectos específicos da condição de representante da própria comunidade quilombola, cujo território é parte integrante de sua identidade étnica, servindo para sua reprodução física e cultural e, ao ser delimitada, possuiu caráter pro indiviso, cuja titulação é coletiva em nome da comunidade.
No caso dos autos, conforme fundamentado na decisão que antecipou a tutela possessória, resta comprovado que a Fazenda Hema encontra-se no interior do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga.
Com efeito, o imóvel objeto do feito, está localizado às margens do Córrego Ribeirão dos Bois, conforme ilustra o relatório e o memorial descritivo elaborados pelo INCRA (ID 1166643774, fls.04/12 e ID 1166643776, fls. 01/05), mesma região indicada no art. 1º da Lei Estadual nº 11.409/1991, que constitui tais terras como patrimônio cultural e sítio de valor histórico.
A propósito, confira-se o mapa da região e a localização da Fazenda Hema (ID 1166643760): Ademais, com base no conjunto probatório apresentado nos autos, tenho como incontroversa a ocorrência do esbulho possessório perpetrada pelo requerido em desfavor de alguns membros da comunidade Quilombola, havendo elementos concretos que o requerido foi instado oficialmente a desocupar o aludido imóvel rural em maio de 2021, conforme notificação expedida pela AQK (ID 1166643756).
Por conseguinte, a associação autora, na qualidade de representante Kalunga, assegura que o requerido não integra a dita comunidade, ocupando a Fazenda Hema sem qualquer justo título que o ampare.
Por sua vez, o demandado não demonstrou ser proprietário da Fazenda Hema, muito menos apresentou defesa nos autos.
Assim, não pertencendo à comunidade Kalunga, desimportante tenha adquirido a posse de parcela do imóvel, já que somente aos Kalunga é permitido ocupar o Sítio Histórico, tendo em vista que a posse exercida na região é dotada de natureza coletiva, o que impede a venda das posses ou propriedades de forma singular e sem anuência da comunidade.
Diante da comprovação da posse da autora, da relação identitária com a terra, bem como da comprovação do esbulho, a procedência do pedido possessório é medida que se impõe, confirmando-se a liminar anteriormente deferida.
III - DISPOSITIVO Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido deduzido na petição inicial, nos termos do art. 487, I, do CPC, confirmando a liminar anteriormente deferida, determinando a imediata reintegração de posse do imóvel denominado Fazenda Hema, no Município de Teresina de Goiás/GO à parte autora.
Condeno a parte requerida ao pagamento, pro rata, das custas processuais e dos honorários advocatícios em favor da parte vencedora, os quais fixo em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, com fulcro nos arts. 82, § 2º e 85, §§ 2º, 3º, 4º, III, do CPC.
Havendo recurso, intime-se a parte contrária para contrarrazões.
Após, encaminhem-se ao eg.
TRF-1.
Oportunamente, arquivem-se os autos.
Intimem-se.
Cumpra-se.
Formosa/GO, data do registro eletrônico.
GABRIEL JOSÉ QUEIROZ NETO Juiz Federal [1] O termo quilombo tem origem na etimologia bantu, significando acampamento guerreiro na floresta.
Atualmente está relacionado às comunidades negras rurais que agrupam descendentes de escravos que vivem da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte vínculo com o passado ancestral. [2] O povo Kalunga é uma comunidade de negros originalmente formada por descendentes de escravos que fugiram do cativeiro e organizaram um quilombo, ainda no século XVIII, na região da Chapada dos Veadeiros.
O território Quilombo Kalunga foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil.
O título internacional é concedido a regiões que mantêm a conservação da natureza e asseguram o bem-estar de seu povo. [3] A comunidade de remanescentes de quilombo Kalunga, como hoje é chamada, passou a ser a representação de uma unidade étnica que se formou no local ao longo de três séculos.
Reconheciam-se por várias outras denominações, do ponto de vista interno, mas o termo Kalunga, sempre derivou de fora (os habitantes das cidades vizinhas referiam-se aos “Kalungueiros”.
Atualmente, a denominação etnocêntrica Kalunga encontra ampla aceitação pelas comunidades em decorrência de seu reconhecimento jurídico-constitucional. -
30/05/2023 00:00
Intimação
PODER JUDICIÁRIO JUSTIÇA FEDERAL Subseção Judiciária de Formosa-GO Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Formosa-GO PROCESSO: 1001848-26.2022.4.01.3506 CLASSE: REINTEGRAÇÃO / MANUTENÇÃO DE POSSE (1707) POLO ATIVO: ASSOCIACAO QUILOMBO KALUNGA e outros REPRESENTANTES POLO ATIVO: ANDREA GONCALVES SILVA - GO44639 POLO PASSIVO:GILIARDE SOUSA DE MESQUITA DECISÃO Trata-se de ação de reintegração de posse, com pedido de tutela provisória de urgência, proposta pela ASSOCIAÇÃO QUILOMBO KALUNGA - AQK em face de GILIARDE SOUSA DE MESQUITA, objetivando a reintegração de posse do imóvel denominado Fazenda Hema, no município de Teresina de Goiás, que teria sido esbulhada pelo requerido.
Afirma que a presente demanda versa sobre uma parte de terras de 05 (cinco) alqueires da Fazenda Hema, registrada sob a matrícula 3.214 no Cartório de Registro de Imóveis de Teresina de Goiás, tendo como proprietário Zacarias Pereira das Virgens.
Narra que a Fazenda Hema ou Ema, em sua totalidade, está inserida no perímetro de delimitação e demarcação do Território Quilombola Kalunga e que na área objeto da presente demanda, residem 05 (cinco) famílias Kalunga, representadas por Eva Bispo da Silva, Jose Fernandes Pereira das Virgens, Maria Bispo e Sila dos Santos Rosa.
Diz que o imóvel ainda não foi desapropriado e que no ano de 2007, José Pereira das Virgens, filho do Sr.
Zacarias, também Kalunga, requereu ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA a desapropriação do imóvel.
O processo foi autuado sob o número 54700.001336/2007-14, porém está paralisado desde o ano de 2012.
Aduz que o titular do domínio, Sr.
Zacarias, era Kalunga, sua família já vivia no imóvel há décadas, sendo titular de outras propriedades vizinhas à área objeto do feito.
Defende que os Kalunga sempre estiveram no exercício da posse em toda a fazenda Hema, ou Ema e, após o falecimento de Zacarias, a posse continuou sendo exercida pelos seus herdeiros, filhos, e posteriormente netos.
Alega que em meados de fevereiro de 2021 tomou conhecimento de que o requerido estava ocupando o imóvel objeto da presente demanda.
Segundo rumores, este teria adquirido o direito de posse por compra feita ao Sr.
Pedro Gomes de Silva, que por sua vez teria comprado o direito de posse de Ronaldo, um dos filhos do Sr.
José Pereira das Virgens, e, portanto, neto do Sr.
Zacarias.
Salienta que o imóvel ora esbulhado era ocupado não só por Ronaldo, mas por outros filhos do Sr.
José Pereira das Virgens, que também possui moradia e produção na Fazenda Ema.
No entanto, muito embora não possa atestar que a informação é procedente, seria fato que um não Kalunga estaria ocupando indevidamente um imóvel de propriedade e posse dessa comunidade quilombola.
Argumenta que em sendo verdadeira a informação de que o requerido comprou um direito de posse, de acordo com as normas legais vigentes relativas a terras quilombolas, bem como o Estatuto Social e o Regimento Interno da requerente, não há qualquer permissão para venda de posses no território, já que a posse é de natureza coletiva e os títulos de domínio quando emitidos são títulos pro-indivisos e ficam sob a tutela da requerente.
Relata que para resolver o conflito, assim que tomou conhecimento do fato, providenciou a Notificação Extrajudicial do requerido para a desocupação do imóvel no prazo de quinze dias, dada a ocupação de forma ilegal, por tratar-se de área para uso exclusivo da Comunidade Kalunga.
A notificação foi efetivada pelo Oficial de Justiça do Cartório de Teresina de Goiás-GO (certidão anexa), contudo, o requerido quedou-se inerte em atender ao pedido de desocupação do imóvel e informou à um dos componentes da Diretoria Executiva da AQK que não desocuparia o imóvel, a não ser por ordem judicial.
Defende que os quilombolas transformaram as terras ocupadas como meio de resgate de sua cultura e lembranças da terra natal “deixada”, enquanto posteridade afrodescendente e que esta forma de viver foi passada às gerações vindouras, de modo que, hodiernamente, os remanescentes quilombolas utilizam o imóvel para revivificar os seus modos de criar, fazer e viver (art. 216, inciso II, CF) de sua terra, de onde os seus antecessores foram violentamente retirados.
Sustenta que os Kalunga se tornaram com o passar dos anos, uma comunidade negra rural que agrupa descendentes de escravos ligados entre si pela ancestralidade comum, partilhando uma herança cultural e material, uma visão de mundo que envolve valores e lhes conferem uma referência presencial, no sentido de ser e pertencer a um grupo negro particular, associado a um lugar de origem histórica.
Rememora que o Estado de Goiás, em 10 de janeiro de 1996, editou a Lei Complementar nº. 19, reconhecendo a área em comento como remanescente de quilombo a comunidade que ali reside desde o século XVIII.
Invoca, ainda, as disposições da Medida Provisória nº 1.049/2000, que autorizou a Fundação Palmares a emitir o título de reconhecimento de domínio nº. 004/2000 das terras ocupadas em 17/04/2000 em favor deste grupo social e que a titulação da Fundação Palmares teve por base Relatório Histórico-antropológico atestando que a posse dos remanescentes do Quilombo Kalunga vem de praticamente 300 anos.
Ressalta que como direito real que é, no que diz respeito às comunidades quilombolas, não teria advindo apenas o título expedido pela Fundação Cultural Palmares, uma vez que o artigo 68 do ADCT já garante de plano a propriedade das terras ocupadas pelas comunidades quilombolas, despontando as atividades do Estado (representada pela FCP) com o intuito de concretizar o comando constitucional, apenas de natureza declaratória, e não constitutiva.
Acrescenta que a propriedade, nesses casos, era um direito subjetivo preexistente à promulgação do Texto Constitucional, já que o termo “propriedade definitiva” constante no referido artigo constitucional remete justamente à conclusão de que já havia uma posse existente, que agora, deve ser reconhecida, conferindo então o devido título de propriedade, para maior segurança jurídica.
Sustenta que o artigo 68 do ADCT já garante a propriedade aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, devendo o Estado emitir-lhes os títulos definitivos.
Afirma que a AQK dentre outras atribuições, faz a gestão desta distribuição dos quilombolas reconhecidos como Kalunga para ocuparem as terras disponíveis, em consonância com o Estatuto Social e o Regimento Interno da Associação Quilombo Kalunga, que regem a forma de uso e ocupação das terras que são ocupadas historicamente pelo povo Kalunga.
Obtempera que a Constituição Federal prevê que nos artigos 215 e 216 que as manifestações afrodescendentes devem ser preservadas por pertencer ao patrimônio histórico-cultural material e imaterial, integrando nossa civilização, e portanto, interessa à coletividade a sua proteção.
A garantia da posse e propriedade dos quilombolas seria apenas uma consequência de vários motivos determinantes, e um deles seria a preservação de valores culturais, sociais da etnia negra (arts. 215 e 216 da CF e artigo 68 do ADCT).
Registra que essas disposições devem ser interpretadas dentro de um universo de causa e efeito, de forma que tais dispositivos constitucionais evidenciariam, segundo argumenta, o direito que as comunidades quilombolas tem de exercerem a posse e propriedade plena das terras por elas ocupadas e o dever público de atuar ativamente em favor desse reconhecimento.
Salienta que a posse da área esbulhada tem por finalidade a manutenção da vida das pessoas que pertencem à comunidade Kalunga através da criação de animais para a produção de carne e leite para o consumo da população local, cultura de alimentos como o arroz, milho, gergelim, banana, mandioca, e outros, de forma agroecológica, sem uso de agrotóxicos, com trabalho manual e familiar, respeitando a vida em comum com a natureza e observando as regras da comunidade, a qual tem na requerente sua referência.
Afirma que o povo Kalunga é extremamente ordeiro e pacífico e agora se vê esbulhado da sua terra, que é muito mais que uma posse, é um território em que enceta uma outra forma de tratar com o planeta.
Certamente, o modo de viver é que consegue preservar as riquezas naturais (águas, plantas e animais) do território, que é riquíssimo e, que sob constantes ameaças, pode até acabar.
Resume a argumentação dizendo que ainda que haja um negócio jurídico que foi firmado entre um Kalunga e um terceiro, esse ato não deve ser impedimento para o deferimento da presente ação, dada a situação peculiar do imóvel, ou seja, ser um imóvel inserido dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, e portanto, deve ser mantido sob a posse dos moradores do sítio, conforme estabelecido em lei.
Assim, segundo conclui a autora, nenhuma pessoa, ainda que reconhecidamente Kalunga, e nem mesmo a própria requerente, está autorizada a alienar qualquer área dentro do SHPCK, isto devido ao caráter inalienável do bem.
Deste modo, o negócio jurídico firmado entre o Kalunga que residia no imóvel (Ronaldo – filho do Sr.
José Pereira das Virgens) e terceiros é negócio jurídico inválido, ainda que seja herdeiro (neto) do titular do domínio.
A respeito do esbulho narrado, relata que as invasões ocorridas dentro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga tem sido embasada em títulos de propriedade.
No caso em tela, o esbulho estaria devidamente comprovado, porque o requerido foi devidamente notificado pela Requerente a desocupar o imóvel em 04/05/2021 para, no prazo de 15 (quinze) dias a partir da data da notificação, o que não foi cumprido.
Salienta que o requerido vem causando grandes conflitos na área.
De acordo com os relatos dos Kalunga que residem nas proximidades, o requerido se utiliza do imóvel nos fins de semana com fins recreativos, ali faz festas que quando ocorridas provocam muitas perturbações para a população local.
Diante dos fatos articulados, pugnou pela concessão de Gratuidade de Justiça e requereu a concessão de medida liminar, nos termos do art. 562, CPC, para reintegrar a associação autora na posse do imóvel denominado por Fazenda Hema, independente da manifestação de interesse no feito por parte do INCRA, Fundação Palmares e União, bem como para que o requerido se abstenha de ocupar o imóvel objeto da presente demanda, ou qualquer outro imóvel inserido no perímetro do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga, sob pena de multa, requisitando-se, caso necessário, a força policial necessária para promover a desocupação da área, na hipótese de resistência.
Em caráter principal, pediu a confirmação da medida liminar e protestou genericamente pela produção de provas.
Despacho Num. 1170378273 determinou a intimação do INCRA e da Fundação Cultural Palmares para que informassem, no prazo de cinco dias, interesse no feito, bem como a intimação da autora para comprovar que faz jus à concessão da Gratuidade de Justiça requerida.
Petição autoral Num. 1177511264 junta as escriturações fiscais dos anos de 2019, 2020 e 2021 para comprovar a isenção de imposto de renda da pessoa jurídica.
Petições do INCRA e da Fundação Palmares Num. 1214949293 e Num. 1214987254, requerendo ingresso no feito na condição de assistentes simples da autora.
Decisão Num. 1250496758 deferiu o pedido de reintegração de posse e a gratuidade da justiça à AQK.
Petição da autora Num. 1457039350 informando ter sido cumprida a carta precatória e sido a autora reintegrada na posse na data de 07/12/2022.
Carta precatória cumprida juntada ( Num. 1537666892).
Vieram os autos conclusos para decisão de saneamento e organização do processo. É o relatório.
Passo a sanear o feito.
II - FUNDAMENTAÇÃO Nos termos do art. 357 do CPC, deverá o juiz na decisão de saneamento e de organização do processo: i) resolver as questões processuais pendentes; ii) delimitar as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória; iii) definir a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373; iv) delimitar as questões de direito relevantes para a decisão do mérito; e v) designar, se necessário, audiência de instrução e julgamento.
QUESTÕES PREJUDICIAIS E PROCESSUAIS PENDENTES Da Revelia Face à ausência de contestação da parte requerida, decreto sua revelia, nos termos do art. 344, CPC.
QUESTÕES DE FATO E ATIVIDADE PROBATÓRIA A questão de fato controvertida repousa na avaliação dos atributos da posse que a parte autora alega exercer sobre o imóvel Fazenda Hema, que integra o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga (SHPCK), no município de Teresina de Goiá, neste Estado.
A parte autora sustenta o caráter originário e secular da posse exercida pela comunidade Kalunga.
Sobre a questão possessória, portanto, repousará a atividade probatória.
DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA A distribuição do ônus da prova obedecerá ao disposto no art. 373, I e II, CPC, não se vislumbrando necessidade de sua inversão.
QUESTÕES DE DIREITO RELEVANTES PARA A DECISÃO DE MÉRITO As questões controversas de direito, por sua vez, a serem apreciadas em sentença, dizem respeito ao disposto nos arts. 1.210 e seguintes do Código Civil e nos arts. 561 e seguintes do Código de Processo Civil, que estabelecem as prescrições legais sobre o direito de posse e sua implementação processual.
Deveras importante, ainda, a análise da Lei Estadual nº. 11.409/1991, ratificada pela Lei Complementar nº. 19/1996 e pelo Decreto Presidencial de 20 de novembro de 2009, que deram concreção ao disposto no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)1, reconhecendo e delimitando o Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga2 como de posse originária e propriedade da comunidade quilombola Kalunga, e a repercussão jurídica desse reconhecimento em relação aos indivíduos não quilombolas que afirmam possuir direito sobre os imóveis localizados dentro do perímetro do SHPCK.
Merece destaque, ainda, a discussão relativa à natureza da norma prevista no artigo 68 do ADCT, vale dizer, se declaratória ou constitutiva.
DAS PROVAS A SEREM PRODUZIDAS Como se sabe, o art. 319, VI, CPC, dispõe que a petição inicial indicará as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados.
De outro giro, comanda o art. 336, CPC que incumbe ao réu alegar, na contestação, toda a matéria de defesa, expondo as razões de fato e de direito com que impugna o pedido do autor e especificando as provas que pretende produzir.
No caso, o feito comporta julgamento antecipado do mérito, nos termos do art. 355, I do CPC, vez que não há necessidade de produção de outras provas, porquanto suficientemente instruído pelas evidências documentais amealhadas pela parte autora e não contestadas pelo réu, bastantes ao deslinde da controvérsia.
III.
CONCLUSÃO Ante o exposto: 1) dou por saneado o processo; 2) delimito as questões de fato sobre as quais recairão a atividade probatória, nos termos dos fundamentos acima expostos; 3) delimito as questões de direito relevantes para a decisão de mérito, conforme fundamentos acima expostos; 4) delimito o ônus da prova, conforme fundamentos acima expostos; 5) decreto a revelia da parte requerida 6) considero o feito apto para julgamento antecipado do mérito, nos termos do art. 355, I, CPC.
Intimem-se.
Em seguida, venham os autos conclusos para julgamento.
Formosa - GO, data do registro eletrônico. *assinado digitalmente* THADEU JOSÉ PIRAGIBE AFONSO Juiz Federal Substituto _________________________________________________________________________________________________ 1 Art. 68.
Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. 2 O povo Kalunga é uma comunidade de negros originalmente formada por descendentes de escravos que fugiram do cativeiro e organizaram um quilombo, ainda no século XVIII, na região da Chapada dos Veadeiros.
O território Quilombo Kalunga foi reconhecido pela ONU como o primeiro Território e Área conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil.
O título internacional é concedido a regiões que mantêm a conservação da natureza e asseguram o bem-estar de seu povo. -
26/10/2022 11:35
Conclusos para despacho
-
06/09/2022 01:35
Decorrido prazo de FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES em 05/09/2022 23:59.
-
24/08/2022 12:12
Juntada de petição intercorrente
-
12/08/2022 14:16
Juntada de parecer
-
10/08/2022 16:29
Juntada de petição intercorrente
-
05/08/2022 18:17
Juntada de documentos diversos
-
05/08/2022 18:13
Juntada de Certidão
-
05/08/2022 17:52
Expedição de Carta precatória.
-
04/08/2022 18:17
Expedida/certificada a comunicação eletrônica
-
04/08/2022 16:01
Processo devolvido à Secretaria
-
04/08/2022 16:01
Juntada de Certidão
-
04/08/2022 16:01
Expedida/certificada a comunicação eletrônica
-
04/08/2022 16:01
Concedida a Antecipação de tutela
-
04/08/2022 16:01
Concedida a gratuidade da justiça a ASSOCIACAO QUILOMBO KALUNGA - CNPJ: 04.***.***/0001-21 (AUTOR)
-
26/07/2022 13:33
Conclusos para decisão
-
22/07/2022 08:27
Decorrido prazo de ASSOCIACAO QUILOMBO KALUNGA em 21/07/2022 23:59.
-
16/07/2022 02:18
Decorrido prazo de FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES em 15/07/2022 23:59.
-
15/07/2022 11:16
Juntada de petição intercorrente
-
15/07/2022 11:10
Juntada de petição intercorrente
-
30/06/2022 12:05
Juntada de petição intercorrente
-
28/06/2022 11:34
Expedida/certificada a comunicação eletrônica
-
28/06/2022 11:32
Expedida/certificada a comunicação eletrônica
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27/06/2022 21:34
Processo devolvido à Secretaria
-
27/06/2022 21:34
Juntada de Certidão
-
27/06/2022 21:34
Expedida/certificada a comunicação eletrônica
-
27/06/2022 21:34
Proferido despacho de mero expediente
-
27/06/2022 17:25
Conclusos para despacho
-
27/06/2022 09:38
Remetidos os Autos (em diligência) da Distribuição ao Vara Federal Cível e Criminal da SSJ de Formosa-GO
-
27/06/2022 09:38
Juntada de Informação de Prevenção
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26/06/2022 13:11
Juntada de Certidão
-
24/06/2022 21:32
Recebido pelo Distribuidor
-
24/06/2022 21:32
Distribuído por sorteio
Detalhes
Situação
Ativo
Ajuizamento
24/06/2022
Ultima Atualização
09/01/2024
Valor da Causa
R$ 0,00
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