TRF1 - 1002257-39.2025.4.01.0000
2ª instância - Câmara / Desembargador(a) Gab. 32 - Des. Fed. Newton Ramos
Polo Ativo
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Polo Passivo
Movimentações
Todas as movimentações dos processos publicadas pelos tribunais
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19/06/2025 00:00
Intimação
JUSTIÇA FEDERAL Tribunal Regional Federal da 1ª Região PROCESSO: 1002257-39.2025.4.01.0000 PROCESSO REFERÊNCIA: 1002810-44.2025.4.01.3700 CLASSE: AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) POLO ATIVO: UNIÃO FEDERAL POLO PASSIVO:APOLYANNA DA SILVA LIMA REPRESENTANTE(S) POLO PASSIVO: JOSE CARLOS TAVARES DURANS FILHO - MA21198 RELATOR(A):NEWTON PEREIRA RAMOS NETO PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 32 - DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON RAMOS AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) 1002257-39.2025.4.01.0000 AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL AGRAVADO: APOLYANNA DA SILVA LIMA Advogado do(a) AGRAVADO: JOSE CARLOS TAVARES DURANS FILHO - MA21198 RELATÓRIO O Exmo.
Sr.
Desembargador Federal NEWTON RAMOS (Relator): Trata-se de agravo de instrumento interposto pela UNIÃO FEDERAL contra decisão que deferiu parcialmente o pedido de tutela de urgência para inclusão da autora na lista de aprovados nas vagas destinadas às pessoas negras e pardas no Concurso Nacional Unificado (CNU), assegurando sua participação nas demais fases do concurso.
Em suas razões, a parte agravante alega, em síntese, que a decisão recorrida carece dos pressupostos para concessão da tutela de urgência, uma vez que não restou demonstrada a probabilidade do direito da parte autora nem o perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, sendo insuficientes os elementos trazidos aos autos para justificar a medida antecipatória.
Sustenta que a decisão viola o princípio da legalidade administrativa, pois o procedimento de heteroidentificação para aferição de cotas raciais é previsto em normas legais e regulamentares, sendo legítima a atuação da banca examinadora que, baseada no critério fenotípico, constatou a não confirmação da autodeclaração da parte autora, nos termos da Lei nº 12.990/2014 e da Instrução Normativa nº 23/2023.
Aduz, ainda, que a concessão da medida liminar compromete o interesse público e o cronograma do certame, gerando risco de grave lesão à ordem administrativa e ofensa aos princípios da isonomia e da separação dos poderes.
Contrarrazões apresentadas pugnando pela manutenção da decisão. É o relatório.
Desembargador Federal NEWTON RAMOS Relator PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 32 - DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON RAMOS AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) 1002257-39.2025.4.01.0000 AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL AGRAVADO: APOLYANNA DA SILVA LIMA Advogado do(a) AGRAVADO: JOSE CARLOS TAVARES DURANS FILHO - MA21198 VOTO O Exmo.
Sr.
Desembargador Federal NEWTON RAMOS (Relator): A controvérsia em questão cinge-se à análise da legalidade da decisão administrativa que excluiu a candidata do sistema de cotas raciais em concurso público, bem como à possibilidade de manutenção da tutela de urgência que assegurou sua inclusão nas fases subsequentes do certame.
Inicialmente, destaco a relevância das cotas raciais como instrumento de políticas públicas voltado à ampliação do acesso da população negra ao ensino superior e ao serviço público, mostrando-se essenciais à promoção da inclusão social e à democratização de oportunidades, ao inserir essa parcela da população em espaços de decisão e construção do conhecimento.
No âmbito da Administração Pública Federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União, a Lei nº 12.990/2014 estabelece a reserva de 20% das vagas de concursos públicos aos candidatos negros, assim entendidos como aqueles que se autodeclararam pretos ou pardos, conforme o quesito cor ou raça utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (art. 2º, caput).
Além disso, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010) também reconhece como pertencentes à população negra aqueles que se identificam como pretos ou pardos, ou que adotam autodefinição análoga.
Nesse ponto, faz-se necessário um breve esclarecimento quanto ao entendimento anteriormente por mim adotado, no qual considerava incabível a intervenção do Judiciário nas decisões da comissão de heteroidentificação, salvo em casos de ilegalidade manifesta, como a ausência de fundamentação.
Em uma análise mais aprofundada sobre a aplicação das políticas de cotas raciais, entendo ser necessária uma abordagem mais cautelosa, que resguarde a primazia da autodeclaração do candidato, que deve ser considerada a referência principal, sendo afastada apenas quando existirem indícios concretos de fraude ou abuso. É dizer: ainda não me parece que caiba ao Judiciário proceder à valoração de quem deve ou não ser enquadrado como negro ou pardo – seja a partir de fotografias, laudos médicos ou outros elementos probatórios -, mas tão somente privilegiar a teleologia normativa.
Passo a expor os fundamentos que embasaram essa mudança de entendimento, analisando, sobretudo, os princípios constitucionais e a finalidade das políticas de ação afirmativa.
O tema envolve um debate complexo sobre o direito fundamental à autodeterminação do indivíduo, especialmente no contexto das cotas raciais, que transita por dimensões filosóficas, jurídicas e sociais.
Esse debate reflete a tensão entre liberdade individual de se definir e a necessidade de implementar ações afirmativas para corrigir desigualdades históricas.
A autodeterminação refere-se ao direito de uma pessoa definir sua própria identidade e trajetória de vida sem interferência externa indevida.
No contexto social, isso levanta a questão de quem pode se identificar como pertencente a um determinado grupo étnico ou racial, especialmente em sociedades marcadas por miscigenação, como o Brasil.
A aplicação das cotas raciais, enquanto política pública, exige critérios objetivos para identificar os indivíduos aptos a se beneficiar dessas vagas, visando corrigir desigualdades históricas e promover a inclusão de grupos marginalizados no ensino superior e no mercado de trabalho.
Ocorre que a exigência de tais critérios, muitas vezes, entra em conflito com o direito à autodeterminação, pois há situações em que o indivíduo se autodeclara de determinada raça com o intuito de obter vantagens indevidas, gerando dúvidas sobre a legitimidade de sua identidade racial.
Para evitar declarações oportunistas, algumas instituições têm adotado comissões que avaliam a aparência do candidato para confirmar sua identidade racial, o que tem gerado críticas sobre a imposição de critérios externos à identidade individual.
Embora a autodeclaração seja um princípio fundamental, no contexto das cotas, ela pode ser limitada quando há indícios de que está sendo usada de forma oportunista.
Por outro lado, a implementação de critérios que considerem não apenas a aparência física, mas também a trajetória de vida do candidato, incluindo experiências de discriminação e pertencimento social, surge como uma possível solução para resolver as ambiguidades e os conflitos gerados pela aplicação das cotas.
O debate continua equilibrando o direito à autodeterminação com a necessidade de garantir que políticas de ação afirmativa cumpram seu propósito de reparar desigualdades raciais.
O sociólogo Oracy Nogueira (1985)1 explica que, na sociedade brasileira, predomina o preconceito racial de marca, no qual a definição da raça de um indivíduo é determinada de acordo com suas características fenotípicas – como tom de pele, traços faciais e textura dos cabelos –, independentemente da ascendência genealógica.
Esse processo reflete o imaginário social, historicamente construído, que define o pertencimento a determinados grupos étnico-raciais com base na maneira como o indivíduo é enxergado pela sociedade.
A pesquisa realizada pelo sociólogo, na década de 1950, aponta que a discriminação racial na sociedade brasileira se manifesta de forma diversa à observada nos Estados Unidos.
Na sociedade norte-americana, historicamente, construiu-se o entendimento de que qualquer pessoa com ascendência negra, por menor que fosse, seria suficiente para determinação da identidade racial do indivíduo (one-drop rule, ou regra da gota única).
Embora essa regra não tenha mais força legal, ela influenciou a maneira como a identidade racial é percebida nos EUA.
Nos EUA, os programas de ações afirmativas consideram, como regra, a declaração emitida pelo candidato quanto à sua raça, baseando-se nas categorias estabelecidas pelo Censo dos EUA, que classifica "negros ou afro-americanos" como pessoas com origem em qualquer um dos grupos raciais negros da África (United States Census Bureau).
Para a sociedade brasileira, as características fenotípicas do indivíduo é que o colocam como alvo de discriminação e invisibilização social e, portanto, como sujeito de direito às políticas afirmativas de inclusão racial. É nesse ponto que se evidencia a problemática envolvendo o acesso à política pública pela parcela de candidatos autodeclarados pardos.
A categoria “pardo” faz parte do conceito de população negra, conforme adotado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De acordo com essa classificação, pardos são indivíduos de ancestralidade miscigenada que apresentam características fenotípicas que os aproximam da população negra.
Por essa razão, também estão sujeitos à discriminação racial (IBGE, Critérios de Classificação Racial).
Para a socióloga e professora brasileira Maria Helena de Castro Lima (2020)2, o conceito de pardo não se limita a uma identidade intermediária entre brancos e negros, mas se refere a um grupo racial que compartilha a experiência de exclusão e racismo estrutural, justificando sua inclusão nas políticas de cotas.
Observa-se, ainda, que a atuação das comissões tem apresentado desafios para a confirmação dos candidatos autodeclarados pardos, uma vez que a subjetividade nas avaliações, a falta de fundamentação nas decisões, a ausência de transparência e a exigência de relatos sobre experiências de racismo são fatores que descredibilizam a autodeclaração dos candidatos, pondo em xeque o acesso de parte da população-alvo da política pública de inclusão racial.
Essas questões geram críticas, pois colocam a comissão na posição de julgadora de narrativas que ela, além de não ter recebido competência legal, não possui meios idôneos de investigar.
A propósito, as comissões de heteroidentificação foram criadas como mecanismos de controle para evitar fraudes e garantir a integridade das políticas de cotas raciais.
Esse controle tem fundamento na Lei nº 12.990/2014, que estabelece a reserva de vagas em concursos públicos para candidatos que se autodeclarem pretos ou pardos e prevê a eliminação do candidato caso seja constatada declaração falsa, garantindo-lhe o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 2º, parágrafo único).
Destaque-se que a heteroidentificação não pode ser confundida com heteroatribuição, anulando a autodeclaração do candidato, sem que haja indícios de fraude ou desvirtuamento das políticas afirmativas.
De acordo com o professor Ronilson Ednilson de Jesus (2021)³, em sua obra “Quem quer (pode) ser negro no Brasil?”, baseada em sua experiência na presidência da Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o procedimento de heteroidentificação, como princípio fundamental, não se define como uma busca pela verdade, já que se trata de um procedimento complementar à autodeclaração, a qual possui presunção de veracidade.
Cuida-se, pois, de procedimento para “identificar aqueles candidatos socialmente vistos como pessoas negras, considerando-se a variabilidade interna desse grupo (pretos e pardos)”, restringindo-se, para tanto, “ao conjunto de características fenotípicas visíveis no corpo dos(as) candidatos(as)”.
Ademais, o autor destaca que “é a autodeclaração que instaura a necessidade e a possibilidade da heteroidentificação, evidenciando a prevalência da primeira sobre a segunda”. É importante ressaltar que as Comissões de Heteroidentificação têm sua legitimidade reconhecida pelo Poder Judiciário.
Entretanto, sua atuação deve ser subsidiária à autodeclaração, destinando-se a coibir manifestações fraudulentas e não a estabelecer uma nova normatividade racial arbitrária.
No julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 186, o então Relator, Ministro Ricardo Lewandowski, pontuou que as bancas de heteroidentificação constituem procedimento complementar à autodeclaração, possuindo, essa última, presunção de veracidade.
Acrescente-se que, no julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 41, o Ministro Relator Luís Roberto Barroso destacou que, em casos de dúvida razoável sobre a classificação racial do candidato, deve prevalecer a presunção em seu favor, evitando exclusões indevidas que comprometam a efetividade das ações afirmativas. 68. É por isso que, ainda que seja necessária a associação da autodeclaração a mecanismos de heteroidentificação, para fins de concorrência pelas vagas reservadas nos termos Lei nº 12.990/2014, é preciso ter alguns cuidados.
Em primeiro lugar, o mecanismo escolhido para controlar fraudes deve sempre ser idealizado e implementado de modo a respeitar a dignidade da pessoa humana dos candidatos.
Em segundo lugar, devem ser garantidos os direitos ao contraditório e à ampla defesa, caso se entenda pela exclusão do candidato.
Por fim, deve-se ter bastante cautela nos casos que se enquadrem em zonas cinzentas.
Nas zonas de certeza positiva e nas zonas de certeza negativa sobre a cor (branca ou negra) do candidato, não haverá maiores problemas.
Porém, quando houver dúvida razoável sobre o seu fenótipo, deve prevalecer o critério da autodeclaração da identidade racial.
Desse modo, a jurisprudência firmada pela Corte Suprema reconhece a legitimidade da autodeclaração como critério para definição do pertencimento racial no Brasil, assim como a utilização das comissões de heteroidentificação, com o objetivo de garantir a efetividade da política pública, coibindo eventuais fraudes ou desvios do propósito que o legislador conferiu ao mecanismo de inclusão.
A intervenção judicial, portanto, pode ser necessária não apenas para corrigir ilegalidades formais, mas também para garantir que os critérios adotados pela Comissão estejam em consonância com a finalidade constitucional das políticas de ação afirmativa.
Embora o controle judicial sobre atos administrativos de heteroidentificação deva ser excepcional, o Poder Judiciário não está impedido de revisar decisões que apresentem ilegalidades flagrantes, como ausência de motivação, critérios arbitrários ou desvio de finalidade.
Assim, seguindo o entendimento do Ministro Luís Roberto Barroso no julgamento da ADC 41, em casos de dúvida razoável sobre a classificação racial de um candidato, deve prevalecer a presunção em favor do candidato.
Objetivamente, entendo que: (1) se a decisão da Comissão de Heteroidentificação não apresentar fundamentos claros e objetivos, a exemplo de classificação superficial e genérica, sem justificativa adequada, há vício de legalidade passível de correção judicial; (2) se a decisão da Comissão não for unânime, configura-se de plano um cenário de dúvida razoável, devendo prevalecer o princípio da presunção em favor do candidato; (3) nos chamados "casos de zona cinzenta", em que há dúvida sobre a classificação racial do candidato, deve-se privilegiar a autodeclaração, salvo se houver elementos concretos que evidenciem fraude manifesta.
O combate a fraudes e abusos no sistema de cotas é um aspecto fundamental para sua efetividade.
No sentido vernacular, "fraude" pode ser entendida como qualquer ato intencional de engano ou falsificação para obter vantagem indevida.
No caso das cotas raciais, isso ocorre quando um candidato que não é socialmente reconhecido como negro ou pardo se autodeclara dessa forma apenas para usufruir do benefício, contrariando o objetivo da política afirmativa.
Porém, como é cediço, fraude não se presume.
Daí o prestígio que se deve dar à autodeclaração no contexto racial.
Ao menos nesse momento processual, o conjunto probatório permite a caracterização de dúvida razoável em favor da parte agravada, uma vez que a banca examinadora indeferiu o recurso interposto pela candidata contra o resultado provisório no procedimento de verificação da condição declarada para concorrer às vagas reservadas a candidatos negros, limitando-se a informar “não enquadrado (após recurso)” (Id. 2166662876 do processo de origem).
Observa-se que a decisão em questão carece de fundamentação adequada, limitando-se a afirmar que a candidata não foi enquadrada como cotista, sem explicitar os critérios utilizados para a formação do seu juízo de valor.
Com tais razões, voto por negar provimento ao agravo de instrumento.
Desembargador Federal NEWTON RAMOS Relator ________________________________________________ [1] NOGUEIRA, Oracy.
Tanto preto quanto branco: Estudos das relações raciais.
São Paulo.
T.A Queiroz, 1985, pp 229 e ss. [2] LIMA, Maria Helena de Castro.
Cotas Raciais e Fenótipo: Os Desafios das Comissões de Heteroidentificação.
Revista de Políticas Públicas, 2020. [3] JESUS, Rodrigo Ednilson de.
Quem quer (pode) ser negro no Brasil? Belo Horizonte: Autêntica, 2021.
PODER JUDICIÁRIO Tribunal Regional Federal da 1ª Região Gab. 32 - DESEMBARGADOR FEDERAL NEWTON RAMOS AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) 1002257-39.2025.4.01.0000 AGRAVANTE: UNIÃO FEDERAL AGRAVADO: APOLYANNA DA SILVA LIMA Advogado do(a) AGRAVADO: JOSE CARLOS TAVARES DURANS FILHO - MA21198 EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
AGRAVO DE INSTRUMENTO.
CONCURSO PÚBLICO.
COTAS RACIAIS.
PARECER DA COMISSÃO DE HETEROIDENTIFICAÇÃO.
AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO.
PRESUNÇÃO EM FAVOR DA AUTODECLARAÇÃO.
MANUTENÇÃO DA TUTELA DE URGÊNCIA.
AGRAVO DESPROVIDO.
I.
CASO EM EXAME 1.
Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão que deferiu parcialmente o pedido de tutela de urgência para inclusão da autora na lista de aprovados nas vagas destinadas às pessoas negras e pardas no Concurso Nacional Unificado (CNU), assegurando sua participação nas demais fases do concurso. 2.
A parte agravante alega que a decisão carece dos pressupostos para concessão da tutela de urgência, que a atuação da banca examinadora pautou-se em critérios legais, e que a concessão da liminar comprometeria o interesse público e a ordem administrativa.
II.
QUESTÃO EM DISCUSSÃO 3.
A controvérsia em questão cinge-se à análise da legalidade do ato administrativo que excluiu o candidato do sistema de cotas raciais no concurso público, com fundamento na avaliação realizada pela comissão de heteroidentificação, bem como à possibilidade de manutenção da tutela de urgência que assegurou sua participação nas fases subsequentes do certame.
III.
RAZÕES DE DECIDIR 4.
O sistema de cotas raciais no Brasil tem fundamento constitucional e se destina à correção de desigualdades históricas que afetam a população negra e parda, garantindo o acesso a espaços de formação e decisão. 5.
A autodeclaração do candidato é o ponto de partida para o acesso ao sistema de cotas, possuindo presunção de veracidade.
No entanto, a fim de evitar que candidatos que não pertencem aos grupos beneficiários acessem indevidamente essas vagas, a legislação permitiu a criação de comissões de heteroidentificação para validar a declaração dos candidatos, desde que respeitados o contraditório e a ampla defesa.
Essa previsão está expressa na Lei nº 12.990/2014 e tem sido reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) como um mecanismo legítimo de controle. 6.
A jurisprudência do STF, em especial nos julgamentos da ADPF nº 186 e ADC nº 41, reconhece a validade das comissões de heteroidentificação, desde que garantidos o contraditório e a ampla defesa, bem como a necessidade de que a exclusão do candidato esteja devidamente fundamentada. 7.
Neste ponto, ressalte-se a mudança de entendimento desta relatoria quanto à possibilidade de intervenção do Poder Judiciário nos atos administrativos das comissões de heteroidentificação.
Anteriormente, o posicionamento adotado era no sentido de que o Judiciário apenas poderia intervir quando houvesse ilegalidade manifesta, como ausência de motivação.
No entanto, diante de uma análise mais aprofundada sobre a matéria e a jurisprudência, reconhece-se que o controle judicial deve abranger também a verificação da coerência dos critérios aplicados pela comissão com a finalidade constitucional das políticas afirmativas.
Dessa forma, a intervenção judicial não se limita a sanar ilegalidades formais, mas deve garantir que os procedimentos administrativos respeitem a essência das ações afirmativas, assegurando que a exclusão de candidatos não ocorra de forma arbitrária ou desproporcional. 8.
A existência de subjetividade no processo de heteroidentificação não pode conduzir à adoção de decisões arbitrárias que prejudiquem candidatos que efetivamente se enquadram no grupo beneficiado pela política pública.
A literatura sociológica aponta que, no Brasil, a discriminação racial ocorre predominantemente pelo critério do preconceito de marca, ou seja, pela percepção social da cor da pele e dos traços fenotípicos do indivíduo.
Assim, a exclusão de candidatos que se autodeclaram pardos sem que haja uma motivação clara e específica representa um risco à própria efetividade das ações afirmativas. 9.
Ainda que as comissões de heteroidentificação sejam legítimas, sua atuação deve ser subsidiária à autodeclaração, servindo como um mecanismo de verificação para coibir fraudes e não como um instrumento de reinterpretação racial dos candidatos.
O controle judicial sobre esses atos administrativos deve ser excepcional, mas pode ser exercido quando houver violação aos princípios da legalidade, da motivação e do contraditório. 10.
No caso, o parecer da comissão, ao se restringir a uma afirmação genérica sem indicar quais critérios objetivos foram utilizados para afastar a autodeclaração, apresenta fragilidade jurídica e viola os princípios da motivação e da razoabilidade. 11.
Havendo dúvida razoável sobre a classificação racial do candidato, sem que houvesse comprovação de falsidade ou fraude na sua autodeclaração, impõe-se a anulação do ato administrativo que impediu a candidata de concorrer às vagas destinadas ao sistema de cotas, conforme entendimento do STF na ADC nº 41.
IV.
DISPOSITIVO E TESE 12.
Agravo de instrumento desprovido.
Tese de julgamento: "1.
A atuação das Comissões de Heteroidentificação deve ser complementar à autodeclaração, limitando-se a coibir fraudes e desvios de finalidade. 2.
A decisão da Comissão de Heteroidentificação deve ser fundamentada de forma clara e objetiva, sob pena de nulidade. 3.
Havendo dúvida razoável sobre a classificação racial do candidato, deve prevalecer a presunção em favor da autodeclaração".
Legislação relevante citada: Lei nº 12.990/2014, art. 2º; Lei nº 12.288/2010, art. 1º.
Jurisprudência relevante citada: STF, ADPF 186, Relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, Julgado em 26-04-2012, Acórdão Eletrônico Dje-205 Divulg 17-10-2014 Public 20-10-2014 Rtj Vol-00230-01 Pp-00009; STF - ADC : 41 DF 0000833-70.2016.1 .00.0000, Relator.: Roberto Barroso, Data de julgamento: 08/06/2017, Tribunal Pleno, Data de publicação: 17/08/2017.
ACÓRDÃO Decide a 11ª Turma, por unanimidade, negar provimento ao agravo de instrumento, nos termos do voto do Relator.
Brasília/DF.
Desembargador Federal NEWTON RAMOS Relator -
29/01/2025 15:07
Recebido pelo Distribuidor
-
29/01/2025 15:07
Distribuído por sorteio
Detalhes
Situação
Ativo
Ajuizamento
29/01/2025
Ultima Atualização
19/06/2025
Valor da Causa
R$ 0,00
Documentos
ACÓRDÃO • Arquivo
ACÓRDÃO • Arquivo
ACÓRDÃO • Arquivo
DESPACHO • Arquivo
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